quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

MEMÓRIAS DE ADRIANO

Tenho sessenta anos. Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo.

A minha margem de hesitação já não se alonga em anos, mas em meses. As minhas probabilidades de acabar com uma punhalada no coração ou por uma queda de cavalo tornam-se cada vez menores; a peste parece improvável, a lepra ou o cancro afiguram-se definitivamente afastados. Já não corro o risco de cair nas fronteiras, atingido por um machado helénico ou trespassado por uma flecha parta; as tempestades não souberam aproveitar as ocasiões que se lhes ofereceram, e o feiticeiro que me predisse que eu não me afogaria parece ter acertado. Morrerei em Tíbure, em Roma ou em Nápoles quando muito, e uma crise de sufocação encarregar-se-á da tarefa. Serei levado pela décima ou pela centésima crise? É essa a única questão. Assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte.


Certas fracções da minha vida assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido renuncia a ocupar todo.


Excerto de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar (1903-1987), obra densa e cheia de boas ideias. Demasiadas, talvez. Quando um dia comentei esta probabilidade com alguém tive dificuldade em explicar que as melhores partes de um livro devem ter como contraponto outras menos excelentes, mas que permitam ao leitor ter tempo para respirar. Ideia absurda? Provavelmente.
Na torrente de palavras de Memórias de Adriano, escrito em 1951, destaca-se esta passagem, uma das mais belas do livro. O limiar da eternidade, pensado com melancolia e sem retorno.
Também para mim um percurso se aproxima do seu término e outro, que ainda não sei qual, se iniciará.
A fotografia de Paulo Nozolino (n. 1951) talvez não tenha uma relação directa com o texto mas a ideia da morte e do fim é-lhe familiar. Quando a mostrei a uma amiga perguntou-me “É o quê? Um campo de concentração?”. Não consegui dizer que sim ou que não. É uma imagem de Sarajevo, quando a cidade estava cercada.

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