segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

MANUAL DE INSTRUÇÕES

A primeira televisão da família foi comprada, talvez em 1968, talvez em 1969, ao sr. Manuel Alfaiate. “É simples, o botão roda para a direita e liga, para a esquerda desliga”. Na realidade havia mais dois botões: o do meio controlava mais luz menos luz, o da direita mais som menos som. “Se houver problema diga qualquer coisa”. Não houve e o His Master’s Voice durou catorze anos. Já toda a gente tinha tv a cores e ainda o João dizia “enquanto esta durar não se compra outra”.
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Senti uma pouca comum nostalgia da Rua Nova da Estação e da minha primeira tv quando no outro dia me tornei proprietário de um DVD Home Theatre System. Passaram-me para as mãos uma caixa enorme com um aparelhómetro lá dentro, um comando à distância, uma garantia europeia e cinco volumes de instruções. Abri um ao acaso. Diagramas e mais esquemas, folhas e folhas de ordens imperativas. Só me apercebi que estava no livro errado quando li qualquer coisa como “zestaw rozpoczyna odtwarzanie”. Era a versão polaca, pelo menos parece polaco. Dediquei-me então à tarefa de decifrar o volume em português. A diferença do português electrónico em relação ao polaco electrónico não é por aí além…
A
Ao cabo de duas horas, o DVD já funcionava. Um pouco pelo menos. Faltava, pequeno detalhe, o som, apesar das cinco-poderosas-cinco colunas. Pus o volume da tv no máximo para compensar. “Ena, agora sim, temos som” diziam os putos entusiasmados, enquanto o velho televisor se esganiçava e trepidava com a distorção. Mais um quarto de hora e consegui pôr as colunas a funcionar. As laterais, que a do centro estava muda. Reiniciei o sistema. Encostei o ouvido à coluna do centro. Agora sim. Quer dizer, mais ou menos sim. Agora não funcionavam as laterais. O manual da Sony (96 páginas!) mandava-me ir da página 10 para a 17 depois para a 59 e depois regressar à 10. Desliga e volta a ligar. Agora há som mas a imagem está a preto e branco. Já é uma e meia da manhã. Volto ao manual. Leio frases estranhas: “nos DATA CD/ DATA DVD que contêm ficheiros de vídeo DivX para além de faixas de áudio MP3 ou ficheiros de imagem JPEG, o sistema só reproduz os ficheiros de vídeo DivX”. O que é que raio isto quererá dizer?
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De repente, já passa das duas, funciona tudo. Empurro o móvel contra a parede. Desaparecem a imagem e o som. Volto à casa da partida, como no Monopólio. Dou um berro e acordo os miúdos. Protestos do andar de cima. Mexo em todas as fichas e todos os botões ao mesmo tempo. Afinal era só a ficha SCART que estava fora do sítio. Não sei o que é a ficha SCART mas o Manuel é que me disse dois dias depois que era a ficha SCART que se tinha desligado.
A
São quase três da manhã e estou exausto. O manual de instruções vai para a gaveta mais funda. Os exemplares em inglês, francês, espanhol e polaco vão direitinhos para o balde dos recicláveis. Bem vistas as coisas, o livreco em português podia ter o mesmo destino. Quando o despertador toca às sete amaldiçoo o DVD e só tenho alento para pensar “ao menos o tio Podger* não tinha que estar na Câmara antes das nove da manhã…”. Saio de casa com saudades de ver o Daktari, e o Calimero e o Skippy e aqueles filmes todos que davam no His Master’s Voice a preto e branco. Que não tinha manual mas durou, mesmo sem instruções em polaco, para cima de uma eternidade.
s
* Personagem do livro Três homens num bote de Jerome K. Jerome (há exemplar na Biblioteca Municipal – vejam como o tio Podger pendura um quadro…)
A minha velha tv era mais ou menos assim, com aqueles selectores redondos e tudo. Quando chovia viamos o telejornal às risquinhas, como aquelas gravatas fora de moda.
Este texto foi publicado no jornal A Planície de 1 de Dezembro de 2007.

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