quinta-feira, 18 de junho de 2009

HONORIS CAUSA - ANTÓNIO BORGES COELHO

Assisti ontem, ao final da tarde, à cerimónia do doutoramento honoris causa de António Borges Coelho. O grau foi-lhe conferido pela Universidade do Algarve.

Nascido em Murça, em 1928, António Borges Coelho teve um percurso que foi, no mínimo, atípico. A sua personalidade e o seu percurso constituem, para mim, um exemplo de empenhamento cívico, político e académico. Senti, por isso, uma imensa vergonha quando a Universidade do Algarve me solicitou um parecer para se avaliar a justeza da atribuição do grau de Doutor Honoris Causa ao catedrático António Borges Coelho. Porque, evidentemente, o patamar em que ele se situa está muito acima do meu. Mas, ao mesmo tempo, senti um enorme orgulho por poder participar na homenagem que a Academia presta a uma das suas figuras maiores. Tenho, por isso, o maior prazer em publicar o texto do parecer que me foi solicitado.


PARECER

Solicita-nos a Universidade do Algarve parecer sobre o currículo do Doutor António Borges Coelho, tendo em vista a atribuição do grau de Doutor Honoris Causa por aquele estabelecimento de ensino superior.

Oitenta anos de vida e décadas initerruptas de compromisso activo com a sociedade não são passíveis de resumo em duas ou três páginas, por muito laudatórias que estas pretendam ser. As linhas que se seguem são, assim, um breve lampejo sobre um existência plena de acontecimentos e de realizações e são uma imagem necessariamente pobre e incompleta do que foi a passagem de António Borges Coelho pela Academia.

Consideramos, desde logo, que a proposta não pode, por redutora, cingir-se ao percurso, desde logo merecedor de todo o respeito e admiração, do Doutor Borges Coelho enquanto professor universitário. Um leque de outros domínios merecerá referência obrigatória e serão considerados elementos referentes às diversas facetas do seu percurso, designadamente as que se relacionam com as actividades cívica e intelectual, não se tendo esta última cingido à vida académica.

António Borges Coelho, activista político
Foi um percurso improvável, o de António Borges Coelho. Aluno do Seminário Franciscano de Montariol, durante cinco anos, viria a deixar a possibilidade de uma vida eclesiástica para ingressar em 1949 na Faculdade de Letras de Lisboa. O curso de História viria também a ser abandonado em 1951. As décadas seguintes foram, para este transmontano de Murça, um período conturbado. A luta política entrou na vida de António Borges Coelho nesse início da década de 50 ao subscrever a candidatura de Ruy Luís Gomes à Presidência da República. Esse acto, hoje uma mera formalidade administrativa, era então uma atitude de coragem política e um desafio claro à ditadura. Seguiu-se, para o jovem Borges Coelho, o percurso trilhado por outros democratas: a militância no Partido Comunista Português e o mergulho na clandestinidade, a prisão pela PIDE e seis anos e meio de cativeiro no Aljube, em Caxias e no Forte de Peniche.

Em Peniche conviveu com Álvaro Cunhal, com Carlos Costa e com Alexandre O´Neill. Amizades que o tempo consolidou e que nem os diferentes caminhos jamais apagaram. Data desses anos o poema Sou barco, que a música e a voz grave de Luís Cília ajudariam a imortalizar. Muitos outros se seguiram, e uma vez que a produção poética nunca deixou de estar presente na sua vida.

Libertado em 1962, continuou a viver até ao 25 de Abril de 1974 sob medidas de segurança, um eufemismo que designava a ausência de direitos políticos, a obrigatoriedade de apresentações periódicas na sede da polícia política, a impossibilidade de tiorar a carta de condução ou de leccionar.

É durante esses anos que António Borges Coelho intensifica a sua produção literária e regressa aos bancos da universidade. Licenciou-se em 1967 com uma dissertação sobre Leibniz, mas continuou a ver vedado o acesso ao mundo do ensino ou a qualquer outra actividade pública. Desenvolveu entretanto trabalho como jornalista – foi fundador de A capital e redactor do Diário de Lisboa e do Diário Popular -, deu explicações e leccionou em vários sítios.

Depois do 25 de Abril, manteve a sua militância cívica e política, embora os dias de maior e mais directo activismo tivessem ficado nos tempos da resistência, da luta e da prsião. O reconhecimento pelo seu empenhamento cívico e intelectual seria expresso, anos mais tarde, com a atribuição do Prémio da Fundação Internacional Racionalista e com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago.

António Borges Coelho, académico
A revolução de 1974 permitiu que o outrora proscrito António Borges Coelho tivesse acesso à Universidade enquanto docente. A sua carreira enquanto investigador era, em muito, anterior à conclusão da sua licenciatura em Histórico-Filosóficas, ocorrida em 1967. Alguns dos seus trabalhos, como Raízes da Expansão Portuguesa ou A revolução de 1383, feitos à margem da instituição universitária e sem a aprovação da mesma, tornaram-se obras de referência para várias gerações de estudantes. Pelo seu rigor científico e pela vontade permanente em questionar a verdade. E por colocarem em causa velhos e apodrecidos dogmas sobre a Idade Média e os alvores do mundo moderno em Portugal. E ainda que não possamos dizer que o Doutor Borges Coelho é um historiador marxista, é inegável que o pensamento de Karl Marx exerceu sobre ele uma evidente influência. Não é menos claro que essa perspectiva, nunca tomada de forma escolástica, permitiu valorizar o papel das massas populares e da pequena burguesia urbana nas mutações ocoridas no final da Idade Média. Também aí ajudou, ainda que com risco pessoal, a romper uma História marcada por ideias pré-concebidas.

Uma das pedras de toque nesse percurso inicial de historiador foi a edição da colectânea Portugal na Espanha Árabe, publicada entre 1971 e 1975, e que se tornou uma obra de referência para várias gerações de investigadores. Ao reunir numa só obra os textos de geógrafos, historiadores, filósofos e poetas do período islâmico, o Doutor António Borges Coelho dava a primazia a um período histórico até então considerado de segunda ordem na História de Portugal. As largas dezenas de projectos de investigação e as inúmeras publicações surgidas, nas útlimas décadas, sobre Portugal Islâmico, são a descendência directa do trabalho pioneiro de António Borges Coelho. Nenhum historiador ou arqueólogo o poderá negar. Nenhum ousará, sequer, fazê-lo.

Talvez esse simples facto justificasse a distinção que agora se pretende atribuir. No entanto, o labor académico do Doutor António Borges Coelho entre 1974 e 1998 teve uma amplitude que importa agora sublinhar e reconhecer. Ensinou, anos a fio, História Medieval e História Moderna. Foi professor de centenas de alunos. Orientou tarbalhos e disertações. Integrou juris de mestrado e de doutoramento. Deixou, atrás de si, um rasto de competência e uma aura de respeito. Mais importante do que isso, criou escola e formou seguidores. Mesmo que o seu inconfundível estilo literário de escrever História não possa ser repetido.

Na Faculdade de Letras de Lisboa, a sua casa de sempre, foi Director do Centro de História, tendo ainda sido responsável pela revista História e Sociedade. Obteve o grau de doutor em 1989, numa fase já relativamente adiantada do seu percurso académico. Mais ainda a tempo de chegar ao posto mais alto da carreira, o de professor catedrático, que ocupou a partir de 1993.

A dissertação que apresentou, sobre a Inquisição de Évora, é o mais completo e aprofundado estudo até à data realizado sobre o tema. Exaustivo e pleno de rigor, mas também magnificamente escrito e, não raro, sardónico. Cremos ter sido, mais do qualquer outra, a que desmontou, em definitivo, a perspectiva do historiador marxista tout-court que tantas vezes se quis colar a António Borges Coelho, como forma de apoucar o seu percurso.

Faltaria, enfim, a menção ao percurso literário de António Borges Coelho. Numa vida vivem vários homens e a verdade é que nos parece incompreensíveis os seus percursos político e académico sem se olhar a produção poética, iniciada ainda nos anos 50. Ou sem completar esta com os romances, com a escrita de peças de teatro ou com as traduções.

Esta diversidade, que não dispersão, de António Borges Coelho são sinónimos da generosidade, seja ela política, cívica, académica ou literária. É também essa forma generosa e de total entrega de viver a Ciência e o Mundo que nos parece ser merecedora do grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Algarve.

Fotografia de António Borges Coelho por Eduardo Gageiro

1 comentário:

Anónimo disse...

é engraçado para mim imaginar que o Santiago conhece este senhor e outros académicos muito importantes que eu estava habituada na minha adolescência a ver em minha casa nas lombadas dos livros. Para mim eles faziam parte da Historia de Portugal...
Para o Santiago eles fazem parte das suas amizades.

Deve ser engraçado ser-se amigo da Historia de Portugal.

Dulcineia