quarta-feira, 31 de março de 2010

RENÚNCIA A SATANÁS

O díptico O Padrinho I e O Padrinho II é considerado pelo painel da Sight and Sound o quarto melhor filme de sempre (num dois em um). Como terei oportunidade de explicar, não seria essa a minha escolha, no seio da obra de Francis Ford Coppola. Em todo o caso são filmes excepcionais e esta brilhantíssima, e perversa, cena é uma das mais importantes do cinema do século XX. Ao som de orações em latim e da música de Bach, Michael Corleone renuncia a Satanás enquanto, sob ordens suas, o rivais da família são liquidados. Podia ter escolhido outras cenas de qualquer destes filmes. Nenhuma outra, contudo, tem o impacto e o tom operático de um baptismo marcado pelo sangue.
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terça-feira, 30 de março de 2010

O NOSSO AGENTE NO GOLFO

A regularidade de visitas feitas a partir de países do Golfo Pérsico (Bahrain, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Oman) "denunciam" um amigo de quem temos (falo em nome de um grupo de pessoal lá do concelho de Moura) saudades. A Feira de Maio começa a 13. Esperamos por si. Não se aceitam desculpas nem "pretextos".
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O DESERTO ALI À FRENTE

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Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
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Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
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Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,
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Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
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Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
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Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
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Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
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Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado se
ntado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.
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Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
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Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.
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Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
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Mais vale arrumar a mala.
Fim.
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Estas fotografias de Elaine Ling (n. em Hong Kong) foram feitas na Namíbia, num antiga aldeia mineira abandonada. A de baixo foi adquirida pelo Centro Português de Fotografia.
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Álvaro de Campos nunca esteve em nenhum deserto. Nem precisou, para poder escrever sobre os desertos que nos assombram.
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Sobre a obra de Elaine Ling: www.elaineling.com
Sobre o Centro Português de Fotografia: www.cpf.pt

AINDA O MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA

A Assembleia-geral da Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional dos Museus (ICOM), reunida em 29 de Março de 2010, no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, tomou posição sobre o problema do Museu Nacional de Arqueologia, que pode ser lida no blogue do Grupo de Amigos do MNA (ver aqui).
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Está também disponível uma petição, que já subscrevi. Quem por aqui passar e se der ao trabalho de ler um pouco sobre o assunto verá que a causa é mais que justa:
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segunda-feira, 29 de março de 2010

MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA

MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA: mudar, só para melhor
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Uma vez que foi anunciada a intenção de fazer transitar rapidamente o Museu Nacional de Arqueologia (MNA) para a Cordoaria Nacional (CN), destinando-se o espaço dos Jerónimos à ampliação do Museu de Marinha ou a um novo museu, o Museu da Viagem, julgo já ser altura de dizer o que penso sobre o assunto. A tal me conduzem os deveres que tenho para com os visitantes, o Grupo de Amigos do MNA, as comunidades científicas e museológicas a que pertenço e sobretudo para com a minha própria consciência pessoal. Vejo, aliás, que o tema mobiliza as comunidades da arqueologia, da museologia e do património e começou a interessar os media. Ainda bem, porque o futuro de uma instituição centenária desta natureza é um assunto de cidadania, que ninguém poderia esperar, muito menos desejar, ficasse escondido dentro de gabinetes.
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Como tenho repetido noutras ocasiões (v. por exemplo Publico, 23-12-2006), não sou, em absoluto, contra a transferência do MNA para outras instalações. Pertenci a equipas que procuraram essas alternativas e elas chegaram a estar prefiguradas em sucessivos PDMs de Lisboa (Alto do Restelo, Alto da Ajuda, terrenos anexos ao CCB, etc.). Tendo falhado todas estas hipóteses, optei na última década – e com eu todas as direcções do Instituto de tutela - por estudar, primeiro, e depois propor projectos de arquitectura muito sólidos, da autoria de Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro, alicerçados em sondagens e estudos geológicos realizados sob supervisão do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), visando a ampliação do MNA nos espaços já ocupados nos Jerónimos. Estes estudos e projectos foram desde 1998 acolhidos por todos os governos que precederam a actual legislatura e chegaram ser formalmente adoptados por um primeiro-ministro, que anunciou o calendário da sua execução.
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Não posso deixar de considerar ser pena que se deitem agora à rua as dezenas, ou porventura centenas, de milhares de euros assim gastos. Mas, enfim, se a opção é de mudança de instalações, então o que importa assegurar é que ela seja claramente para melhor. Não podendo ser para edifício novo, pois que seja para um edifício histórico prestigiado, bem situado e sobretudo adequado às necessidades de um museu moderno, mormente daquele que é um dos mais visitados do Ministério da Cultura, o que possui colecções mais volumosas e vastas e ainda o que tem maior número de bens classificados como “tesouros nacionais”. E já agora, quanto ao espaço deixado livre nos Jerónimos, que se execute nele um projecto cultural que realmente valha a pena e honre a Democracia.
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Ora, devo confessar que, não obstante a atitude positiva que sempre tenho em relação à mudança, o espírito construtivo e colaborante a que minha posição funcional me obriga e ainda a esperança que depositei na orientação política traçada pela actual Ministra da Cultura, tenho agora dúvidas que estes desideratos sejam de facto assegurados.
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Em Novembro e Dezembro passados, após reuniões tidas com a tutela do MNA e directamente com a senhora Ministra da Cultura, foi traçado um caminho que me pareceu e continua a parecer sério e viável, a saber:
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-mandar executar estudos geotécnicos, sob direcção de entidade idónea (que a senhora ministra anunciou à imprensa ser o LNEC), garantidores da viabilidade e condições de instalação do MNA na CN; destes estudos resultariam as obras de engenharia que fossem consideradas como condições prévias a qualquer projecto de arquitectura;
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-execução de um projecto da arquitectura arrojado, respeitador da Cordoaria (ela própria classificada como monumento nacional e merecedora de todo o respeito) e do programa museológico do MNA;
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-afectação de toda a CN ao MNA, reconfigurado institucionalmente de modo a incluir alguns serviços de arqueologia do Ministério da Cultura que nele poderiam desejavelmente ter lugar;
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-não instalação antecipada na CN de serviços do MC, de modo a que o espaço estivesse totalmente disponível para a execução do projecto de arquitectura; correlativamente, não havendo necessidade de ocupação da CN por parte da Cultura, não entrega adiantada à Marinha de espaços nos Jerónimos, mantendo aqui o MNA toda a sua capacidade operacional, até que pudesse ser transferido para a CN, em boa e devida ordem.
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Nos últimos dois meses parece que toda esta estratégia foi abandonada, sem que se perceba muito bem porquê. Talvez apenas pelo que se quer fazer nos Jerónimos e não propriamente pelo interesse na melhoria do MNA. Importa recordar que a ideia de afectar o sector oitocentista dos Jerónimos em exclusivo à Marinha, de forma clara (ampliação do Museu de Marinha) ou encapotada (Museu da Viagem, colocado em instalações alienadas para a Marinha, bem diferente do que seria um tal museu antropológico e civilista, sob tutela exclusiva da Cultura), limita-se a ressuscitar o antigo projecto do Estado Novo, sob impulso do almirante Américo Thomaz, que teve golpe de finados quando o Conselho da Revolução, em Janeiro de 1976 (no rescaldo do 25 de Novembro e quando País corria o risco de uma deriva cesarista), entendeu publicar um decreto hoje risível, no qual se impunha a transferência para a Marinha de todos os espaços dos Jerónimos não afectos ao culto. É irónico que este projecto seja retomado agora, mas… é a vida. Na condição em que subscrevo este texto, apenas me cumpre assinalar esta entorse cívica. Todavia, na mesma condição, cumpre-me mais, cumpre-me denunciar a extraordinária situação para que um museu mais do centenário e um acervo tão vasto e estruturante para o País são atirados, tratados como meros empecilhos para que uma opção política de regime possa rapidamente ser executada. Em ditaduras terceiro-mundistas não se faria diferente.
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Quanto ao edifico da CN o problema não é tanto político mas técnico e altamente complexo, fazendo todo o sentido os cuidados na sua abordagem, acima sumariados. Trata-se de uma proposta que tem meio século, ressurge ciclicamente e foi sempre recusada com base em pareceres técnicos credíveis. Mudaram entretanto as circunstâncias ? Talvez. Mas apenas se alguém com competência bastante puder agora garantir a inexistência ou o adequado controlo dos riscos sísmicos, de inundação, impacte de marés, etc. que são reconhecidos naquele preciso local (edificado sobre o estuário do rio Seco num local, “Junqueira”, que significa pântanos de juncos) e arriscam conduzir a uma catástrofe para o acervo histórico nacional que o MNA guarda. E se outro alguém garantir depois a mobilização dos meios financeiros suficientes para a profunda requalificação do quarteirão inteiro da CN, onde nalguns sectores se verifica uma quase ruína e noutros as coberturas são em telha vã, os pavimentos são irregulares, estão saturadas em sais marinhos, etc., etc. Ora, a única coisa que até aqui me foi apresentado em sentido tranquilizador, foi um parecer dado a título individual por um antigo técnico LNEC, certamente competente, mas que não responsabiliza mais do o seu autor. O Grupo de Amigos do MNA obteve estudo de outro técnico muito credenciado e que vai em sentido contrário; eu próprio recolhi pareceres de dois dos mais reputados especialistas portugueses em engenharia sísmica – e todos concordam em alertar para o risco efectivo e elevado que existe no local da CN.
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Talvez assim se compreenda melhor porque atribuo a esta matéria tanta importância. Talvez se entenda porque não posso em consciência, neste momento, considerar como definitivamente adquirida a transferência do MNA para CN. E, por outro lado, também assim se possa melhor perceber porque considero inaceitável executar desde já o despejo de parte do MNA nos Jerónimos – situação que seria sempre anómala (e desnecessária, porque não existem agora pressões para colocar quaisquer serviços da Cultura na CN), porque o que faria sentido, conforme o acordado inicialmente, era que o Museu apenas desocupasse os espaços actuais quando mudasse de instalações, após as obras profundas de arquitectura a que a CN deverá inevitavelmente ser submetida.
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Continuo, pois, a aguardar a apresentação pública de estudos que garantam a segurança do acervo do MNA na CN. Aguardo, logo depois, a abertura de concurso público ou o convite a arquitecto consagrado para desenvolver o projecto que se impõe, tudo isto sem esquecer os estudos urbanísticos da zona envolvente, de modo a precaver, e potenciar, o fluxo das várias centenas de milhar de pessoas que passarão anualmente a frequentar uma zona em que se irão colocar lado a lado os dois mais visitados museus do Ministério da Cultura.
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No entretanto, o MNA continuará a servir da melhor forma que puder os seus utilizadores, no cumprimento do programa cívico que Leite de Vasconcelos concebeu e Bernardino Machado adoptou. As iniciativas públicas já tomadas em torno do futuro do MNA, com especial relevo para o espírito combativo demonstrado pelo nosso Grupo de Amigos e para os oferecimentos de activa solidariedade por parte de personalidades as mais diversas, das associações científicas e profissionais, das universidades e das autarquias, reconfortam-me e dão fé de que a sociedade civil não está adormecida.
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Luís Raposo
Director do Museu Nacional de Arqueologia, 29 de Março de 2010
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No Museu Nacional de Arqueologia existem peças como este extraordinário colar em ouro, encontrado na Herdade do Álamo, no concelho de Moura.

Não sendo meu hábito a publicação de textos tão extensos no blogue resolvi transcrever, na íntegra, este comunicado do Dr. Luís Raposo, pela sua relevância e clareza. Conheço o Luís Raposo há muitos anos e tive o prazer de trabalhar de perto com ele em duas ocasiões: em 1998, quando fui um dos comissários científicos da exposição Portugal Islâmico, e em 2007, quando integrei a equipa da exposição Lusa - a matriz portuguesa. Conheço bem não só a sua competência como o dinamismo que, das mais diversas formas, imprimiu ao Museu Nacional de Arqueologia.

As dúvidas sobre a proposta de mudança (que toma, a cada dia que passa, contornos de decisão irrevogável) para o edifício da Cordoaria estão, no texto do Director do MNA, colocadas com toda a clareza. São palavras que merecem leitura atenta e reflexão. Esperemos que haja muita gente a ler o texto e a reflectir sobre o que nele é dito...

sábado, 27 de março de 2010

A PERSPECTIVA DAS COISAS

O ante-título é o que acima se lê. O tema da primeira parte da exposição é A Natureza-morta na Europa. Primeira parte: Séculos XVII – XVIII. A segunda parte, a dos séculos XIX e XX, será inaugurada apenas em final de 2011.
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Um amigo meu, ligado a este meio, diz que embirra em particular com a expressão natureza-morta, que lhe parece tétrico (e insuficiente), preferindo o still life dos ingleses. Sinto-me tentado a concordar com ele.
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Tudo isto para dizer que a exposição patente na Gulbenkian é um momento de grande qualidade artística - a maior parte das peças é proveniente de museus estrangeiros e representa as várias "tradições" dentro daquilo que se convencionou chamar natureza-morta - e expositiva. O projecto museográfico que Mariano Piçarra concebeu para a sala do edifício-sede contribui, pela sua beleza e eficácia, para a valorização das pinturas. As paredes laterais estão pintadas num tom tom muito escuro, que faz um contraponto perfeito com o castanho da faixa central. O princípio e o fim da sala, marcadamente informativos, diferenciam-se pelo seu tom quente. O belíssimo catálogo foi concebido pela TVM. Não são mourenses mas têm trabalhado para o nosso concelho em diversas ocasiões.
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Bem sei que isto não é o mais importante, mas para quem se interessa por estas épocas as naturezas-mortas (em Espanha chamam-se bodegones) são uma importante fonte de informação iconográfica. Nas escavações do Castelo de Moura, a Vanessa Gaspar e eu próprio temos materiais do mesmo género da peça cerâmica do centro deste quadro de Juan Zurbaran, datado de inícios do século XVII.
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Ver o site da Fundação: http://www.museu.gulbenkian.pt/exposicoes.asp?lang=pt
Entradas a 5 euros. Até 2 de Maio.

sexta-feira, 26 de março de 2010

MEIN TONY: I CAN WALK!

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O recente falecimento de Michael Foot (1913-2010) foi tema de um post do interessante blogue Duas ou três Coisas. Enviei, a respeito desse texto, o seguinte comentário:
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Também pensava que Michael Foot tinha desaparecido há muito. Até para um jovem universitário da altura era mais que claro que o estilo lunático e o ar excêntrico de Foot nunca o levaria ao poder. Se bem se recorda (não tenho dúvidas que sim!) pontificava na altura na ala radical do "Labour" um outro político amalucado que dá pelo nome de Tony Benn.
Michael Foot, apesar da sua impossibilidade de chegar ao poder tinha aquele estilo genuíno e franco dos que estão destinados a perder. Confesso, ainda assim que o prefiro, a ele ou à própria Thatcher, a Tony Blair. O que conquistou o poder, mas perdeu a alma. Coisas que acontecem.
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O autor do blogue recomendou-me a leitura de uma entrevista realizada por Johann Hari, na altura em que Foot tinha cumprido 90 anos.
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O texto em questão é interessantíssimo. Não só pelo relato muito pessoal que Foot faz da sua passagem pela liderança do Partido Trabalhista como, em particular, da avaliação de Foot sobre Tony Blair. Este é o parágrafo decisivo:
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Yet Foot does not buy into the idea that Tony Blair deliberately deceived the British people. “I haven’t the slightest doubt that Blair was sincere [about WMD],” he explains. “I watched his Commons speech about this, and it isn’t easy to make a speech like that on an occasion like that with implications like that. He was obviously sincere and he obviously made up his mind on the evidence. It doesn’t justify what they did in my opinion. They should have still been trying to think of another way out. It was a terrible mistake, but it was a mistake honestly made.
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Ou seja, Foot acreditava na sinceridade de Blair. Os tempos recentes têm vindo, em especial com as recentes participações em conferências para explicar como ganhar dinheiro, a dar os verdadeiros contornos da criatura. A política internacional não é sítio para boas almas nem para virgens ofendidas? Decerto que não. Mas Tony Blair tem levado a palavra cinismo, com a sua indiferença ante a destruição, a patamares nunca antes atingidos. O final do filme Dr. Estranhoamor assenta-lhe bem.
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quarta-feira, 24 de março de 2010

ARISTÓFANES NO IKEA

Em Assembleia de Mulheres são elas quem toma o poder. Aristófanes escreveu a peça em 392 a.C., mas muitos dos seus temas continuam bem actuais.
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O poder das mulheres é imenso. Foi isso que constatei no outro dia de manhã, no IKEA. O IKEA é um mostruário da nossa sociedade e da nossa civilização. Pelo menos no que à relação entre os sexos diz respeito. Fui arrastado para o IKEA ao abrigo de um qualquer pretexto, que nem ouvi porque naquela manhã estava de boa catadura. Por isso me pude dedicar a uma prolongada análise antropológica, que alimentaria várias teses de mestrado, pelo menos.

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O poder de mobilização dos sindicatos transferiu-se, quase todo, para o IKEA. Quem reivindica são as mulheres, que impõe são as mulheres, que escolhe são as mulheres. Como não ia comprar nada (“nada”, em linguagem feminina, tanto pode equivaler a uma lâmpada de 40 watts como a uma mobília de quarto) pude dedicar-me a observar o mundo em volta. Os corredores do IKEA são a ante-câmara do divórcio. Elas comandam. Abrem e fecham gavetas de cozinhas rebrilhantes, e de qualidade duvidosa, testando a resistência dos materiais. Comparam candeeiros, texturas de almofadas e o conforto de sofás. Atrás seguem os maridos. De ar macilento e bigode murcho. Nos casos mais desesperados, envergam t-shirts por baixo de fatos de treino (o que é que raio irão treinar com aquelas barrigas de nove meses?). Elas comandam, eles arrastam-se. Elas gesticulam, discutem, escolhem e decidem. Eles fazem que sim, cada vez mais submissos e cansados. É o mundo machista às avessas.

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No fim da jornada há gritos e desespero. O cenário é operático. Perto das caixas perfilam-se torres com coisas à espera de serem vendidas. Por entre as torres casais gesticulam e debatem-se. “Avisamos os nossos estimados clientes que encerramos dentro de 15 minutos”, avisa uma voz feminina, ó sim feminina. O cenário converte-se em quase tragédia. Nesses breves momentos, tudo se decide. Vemos pequenas chantagens domésticas, gestos dramáticos, lágrimas e gritos. Assisto à comédia de Aristófanes ao vivo no IKEA. Feliz por ter ido ali para comprar “nada”. O que, como sabemos, em linguagem feminina, tanto pode querer dizer uma lâmpada de 40 watts como uma mobília de quarto.

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Este texto foi publicado em A Planície no dia 1 de Março de 2010. A imagem do criado preto da Casa Africana carregado de embrulhos é uma marca do Portugal colonial. O estilo Casa Africana passou-se para as manhãs domingueiras do IKEA.

terça-feira, 23 de março de 2010

TAP

Os pilotos da TAP desconvocam a greve.
Os pilotos da TAP não prestam declarações.
Onde anda o comandante Ângelo Felgueiras quando precisamos dele?
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KATSUSHIKA HOKUSAI

De Tóquio ao monte Fuji são cerca de 100 km. Não me recordo se em Tokyo monogatari aparece alguma imagem dessa montanha, mas creio que não. Katsushika Hokusai (1760-1849) foi o mais célebre artista do seu tempo. É dele a série Trinta e seis vistas do monte Fuji. Nós não vencemos o tempo. A Arte sim.

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TOKYO MONOGATARI

Homenageemos a beleza japonesa. Cumpre-se hoje o centenário do nascimento do cineasta Akira Kurosawa (1910-1998), mas não é um excerto de um dos seus filmes que aqui se apresenta. Tokyo monogatari, de 1953, foi dirigido por Yasujiro Ozu (1903-1963) e é o quinto na lista de melhores filmes de sempre da Sight and sound.
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Aos vinte anos pensamos que nunca seremos velhos. À medida que o tempo passa essa realidade começa a desenhar-se com firmeza e, aos poucos, vai-se concretizando. É também por isso que Tokyo monogatari me impressionou mais numa recente revisita que quando o vi pela primeira vez. A história é de uma extraordinária simplicidade: um casal de velhotes vai visitar os filhos, mas ali não tem lugar. Os filmes de Ozu traduzem-se numa palavra: elegância. Na escrita, na histórias mas, sobretudo, nas imagens e na representação, das quais este excerto são uma pálida imagem. Tokyo monogatari é um dos dos melhores filmes do mundo? É, de certeza absoluta.
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Já agora, juntem-se a este Rashomon, de Kurosawa, e, sobretudo, Contos da lua vaga, de Kenji Mizoguchi.
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segunda-feira, 22 de março de 2010

BISSAU VII - BIÈRE PORTUGAISE

Traduza-se o guia do Petit Futé para as Guinés (Conakry e Bissau), na página 157:
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Os restauradores proporão instintivamente bebidas importadas aos estrangeiros (em particular cerveja portuguesa que, decididamente, não vale nada). (...) A cerveja local é a Pampa, que não é melhor que a portuguesa".
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Sou pouco dado a patrioteirismos. Não me parece, e tendo uma razoável experiência empírica sobre o tema, que a cerveja portuguesa caiba naquela classificação (não beberam eles a síria, de certeza...). Aqui entre nós, se uma coisa me irrita é gente pretensiosa e com tiques de superioridade. O guia Petit Futé? Razoavelmente desactualizado. Devolvo a frase, agora em língua gaulesa: "le Petit Futé qui, decidément, ne vaut rien blablabla..."
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domingo, 21 de março de 2010

MAIS POESIA

Ruben Amorim, Carlos Martins e Cardozo. Quem é que disse que não se escreve com os pés? Ao começo da noite tombou sobre nós um momento parnasiano.
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QUANDO O SOL CRUZA O PLANO DO EQUADOR CELESTE

A isso chama-se equinócio. Vai começar a Primavera. E é dia mundial da poesia. Não gosto de dias mundiais disto e daquilo. Para a poesia abro uma excepção. Com um texto português, de David Mourão-Ferreira (1927-1996).
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E por vezes as noites duram meses

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

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Texto de um manuscrito árabe medieval de uma das extraordinárias bibliotecas do deserto mauritano (fotografia de Gianni Baldizzone). Poética é a ideia de guardar o conhecimento em sítios recatados e fora do bulício do mundo. Talvez porque só procura as coisas quem as quer encontrar.

sexta-feira, 19 de março de 2010

PAÍS DE POETAS

Já uma vez falei aqui no blogue de um homem chamado Manuel Rio-Carvalho, que foi meu professor de Arte Contemporânea, já lá vão 25 anos. O prof. Rio-Carvalho tinha uma tese interessante sobre a matriz cultural dos países. Dizia ele que sem Camões nunca Portugal teria tido depois a quantidade e qualidade de poetas que teve e tem. Tal como a Espanha, sublinhava, tem a tradição pictórica que tem graças ao génio de Velázquez. Concentrar o percurso histórico num só homem é sempre um risco, mas já tive mais certezas a esse respeito.
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Portugal é um país de poetas. Ainda bem que assim é. O nosso lirismo é notório e passámo-lo aos trópicos de forma evidente.
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Lembrei-me da nossa alma de poetas ao ler no outro dia um daqueles suplementos que os jornais publicam ao sábado. O tema de duas das crónicas era o vinho. Nem mais nem menos que o vinho, aquela extraordinária bebida de que tanto gosto - esta frase vai-me sair cara porque continua ainda a ser estigma alguém confessar que gosta de vinho - mas que me sabe ... a vinho.
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Simples? Nem por isso. A que sabe, afinal, o vinho? Cito os textos dos especialistas: há frases sobre o aroma "coberto por ervas e flores secas, mel e uma boca tremendamente profunda"; há "o adorável toque de vinagrinho, a par de notas de especiarias, café e iodo"; e mais as "notas vegetais e florais, com outras mais apimentadas, minerais e balsâmicas"; bem como a referência a "espargos, cogumelos, fruta vermelha compotada e ainda ligeiros toques medicinais a verniz" ou "referências vegetais e terrosas". Há outro vinho muito fresco, "hortelã e apimentado". Chega? Claro que não chega. A apreciação de vinhos à venda no mercado remete-nos para "aromas de frutas muito maduras, com sugestões balsâmicas" com "surgimento de fruta e um leve toque de fumo de madeira". Ou a "amplitude de aromas na qual as notas de barrica se conjugam muito bem com a fruta". Mais as "sugestões terrosas e de torrefacção, com alguma especiaria e compota de ameixa meio ácida à mistura". Para acabar com as "notas vegetais e de fruta vermelha madura a par de algum chocolate e especiarias".
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Não há limite para o delírio. Mas a minha citação preferida é aquela, quase erótica, ao vinho que, com "um simples gole chega para perfumar e melar a boca".
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Ah, Portugal, país de poetas. E ter eu de confessar que o copo de vinho mais extraordinário da minha vida foi bebido num sítio chamado Corte da Azinha, no concelho de Mértola. Quem mo ofereceu nunca leu suplementos sobre vinhos. Mas sabia coisas mais importantes que essas. E convidou-me para tomar um copo com ele pela mais completa e pura hospitalidade. Isso sim, é o que conta.
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quinta-feira, 18 de março de 2010

TEATRO ROMANO DE LISBOA

A informação chegou-me hoje. Aqui fica para quem passar aqui pela avenida. Está já disponível o site do Teatro Romano de Lisboa (a reconstituição foi de lá surripiada). Tem tudo o que é preciso saber para visitar o local. O museu vale mesmo a pena e a entrada é gratuita, por isso nada de desculpas esfarrapadas...
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Vejam: http://www.museuteatroromano.pt
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LA MARSEILLAISE

Gosto muito da Marselhesa. Em especial, na interpretação de dois grandes músicos: Maxi Pereira e Alan Kardec.
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quarta-feira, 17 de março de 2010

2001

Os anos passam e o filme não envelhece. A verdade é essa. E 2001: uma odisseia no espaço foi rodado em 1968... Mesmo o hiper-realismo de imagens como as desta cena têm uma carácter de autenticidade que escapa a esses junk movies feitos em computador e que não têm uma (uma que seja!) ideia dentro.
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Stanley Kubrick (1928-1999) sempre fotografou com grande rigor. Os seus filmes são, a esse nível, de uma precisão que poucas vezes vi igualada. Outra característica das obras que assinou foi a escolha cirúrgica de músicas para as bandas sonoras. 2001 tem várias exemplos desses. E penso que nada melhor que esta valsa para ilustrar o bailado espacial. Repare-se ainda no avião da PanAm, uma companhia aérea que o tempo levou.
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2001 não está no topo das minhas preferências, mas é o nº 6 da lista da Sight and Sound, que tenho vindo a divulgar.
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terça-feira, 16 de março de 2010

A ESTRELA DE ÍCARO

A Estrela

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.


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A inacessibilidade da estrela e a queda de Ícaro pareceram-me intimamente ligadas, até porque Ícaro quis voar, esquecendo-se que não podia chegar demasiado perto do Sol. Henri Matisse (1869-1954) concebeu esta colagem, cheia de imaginação juvenil, em 1947, quando já tinha 78 anos. Manuel Bandeira publicou A estrela em 1940.

KAPUSCINSKI

A polémica foi ressuscitada. O tema é cíclico. São as reportagens de Ryszard Kapuściński (1932-2007) narrativas factuais ou o célebre jornalista polaco adornou os seus trabalhos com matéria ficcionada? Veja-se o Público de ontem para se entender até onde vai a polémica e para se ver como o assunto é, na Polónia, quase uma matéria de Estado.
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Li, de Kapuściński, Ébano, Another day of life, Imperium e O imperador. A leitura de Ébano causou-me uma profunda e muito positiva impressão, embora uma das narrativas - a do buraco na estrada - me parecesse uma hipérbole da realidade e não um facto concreto. Tempos depois, ouvi o já falecido Cáceres Monteiro (1948-2006) pôr em causa o rigor da reportagem de Kapuściński sobre os últimos dias da Angola colonial (em Another day of life) dizendo simplesmente: "estive lá na mesma altura e não me lembro de ver muitas das coisas que ele diz que viu". Ouvi e registei. Não há nada como a dúvida metódica. Meses depois, perguntei a uma senhora que viveu em Luanda mais de 50 anos - desde que nasceu até 1975 - se conhecia a casa comercial Caminho ao Céu. Disse-me que não. Li-lhe uma passagem do livro: "Better luck (if that's the right word - I doubt it) attends Dom Francisco Amarel Reis, owner of the Caminho ao Céu (Road to Heaven) firm, concealed discreetely in a side street at the edge of the city centre. His speciality: crosses, caskets, foil flowers, funeral accessories". Aprecio imenso o humor negro e acharia um primor que alguém chamasse a uma casa de artigos funerários Caminho ao Céu. Infelizmente, a D. Maria Ornellas não confirmou a existência de tal sítio. Tal como disse não ter ideia de muitos outros pormenores que Kapuściński relatou.
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Kapuściński escreve bem? Não escreve bem, escreve de forma exemplar, não raro com um travo de melancolia. A sua escrita é menor por ele ficcionar factos? Não é. E as reportagens valem o mesmo? Claro que não valem. Nem por sombras.
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segunda-feira, 15 de março de 2010

CORPO SEM LIMITES

A nota no site do Museu Berardo diz apenas: "A obra de Judith Barry (n. 1954, EUA, vive e trabalha em Nova Iorque) envolve performance, arquitectura, cinema, vídeo, instalação, fotografia, escultura e novos media (entre outros). A compreensão da sua obra pode ser entendida através de um vocabulário que se constitui como um glossário, que inclui “Percepção”, “Espaço”, “Duração” e “Contexto” e nos ajuda, num exercício de síntese, a abordar e a compreender a produção artística contemporânea."
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A exposição, comissariada por Luís Serpa, é bem mais que esta economia de palavras. Não conhecia a obra da artista americana e gostei muito do que vi, ainda que tenha gostado desigualmente. As casas que já não existem e das quais só temos memórias difusas, as vozes que se esvaem, as sombras das pessoas são evocações pessoais. Que estão presentes em duas obras intimamente ligadas: “Work of the Forest”, de 1992, e "Study for Mirror and Garden”, de 2008. Tanto uma como outra remetem para jardins misteriosos e onde talvez nunca tenhamos estado.
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A exposição - um dos grandes momentos do ano no panorama artístico - está patente até ao dia 25 de Abril. Informações em www.ccb.pt e em www.museuberardo.com.
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Judith Barry é representada pela Rosamund Felsen Gallery: www.rosamundfelsen.com
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A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.

Sophia de Mello Breyner Andresen

BISSAU VI - CUMERÉ

A ideia inicial era ver o complexo do Cumeré. Ou, ao menos, o que dele resta. O projecto que se gizou foi o de dotar a Guiné-Bissau de uma unidade industrial capaz de processar e preparar para os mercados mundiais a produção de amendoim do país.
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A história é quase tão antiga quanto a do país. O Cumeré nunca chegou a laborar, apesar da estrada que se construiu e dos postes de electricidade que se ergueram ao longo de vários quilómetros, e que nunca tiveram préstimo. Resta hoje uma ruína impressionante, onde se enterrou muito, muito dinheiro. As ruínas são quase sempre interessantes para a fotografia, mas os muros do Cumeré afogam-se no capim.
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Há muito que queria ir ao Cumeré e não dei o tempo por perdido. Por causa do cenário de apocalipse e por causa desta bonita rapariga, que ali estava a escolher arroz e a tomar conta dos irmãozinhos mais novos. Uma pose e um olhar de modelo, sem imaginar o que será uma "academia".
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