quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A FORTIFICAÇÃO SEISCENTISTA DE MOURA NUMA PLANTA DO SÉCULO XX

Pensa-se, ao cabo de um estudo, que já se viu tudo e que se conferiram todas as cartas, todos os textos e todos os dados. Mas não é bem assim.

Durante meses, no já distante ano de 1985, cumpri uma via sacra de aprendiz de investigador. Estava a redigir, para a cadeira de História da Arte Moderna, um trabalho sobre a fortificação de Moura nos séculos XVII e XVIII. Ao longo de meses andei entre a secção de reservados da Biblioteca Nacional, o Arquivo Histórico Militar, a formidável secção de cartografia do Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. O estudo, com abundante cartografia inédita e uma recolha bastante completa das fontes escritas, ficou francamente bom. O que queria dizer, na avaliação do Dr. Álvaro Simões, 14 valores. Raras vezes senti uma tão forte amargura ao ver uma nota numa pauta. Não porque andasse na caça à nota ou porque o 14 comprometesse a média final do curso, mas porque senti que o esforço e o resultado não batiam certo com a classificação.

Acabei por publicar uma versão resumida desse estudo no livro Fortificações Modernas de Moura, assinado em conjunto com Vanessa Gaspar e dado à estampa em 2007. É trabalho de que não me envergonho e que só foi possível concretizar porque nos “tempos bárbaros” em que estudei havia disciplinas anuais. Uma coisa “arcaica” que foi banida, aniquilando de vez a possibilidade dos jovens estudantes começarem a fazer trabalho de investigação nos tempos de faculdade.

Pensava já ter encerrado o dossiê das fortificações pós-medievais quando, ao olhar, há semanas, e pela enésima vez, para uma planta de Moura dos anos 30 do século XX reparei numa curiosa estrutura triangular, pertencente às obras da fortaleza (v. imagem). Situava-se na zona do Fojo, em terrenos onde mais tarde se construiu um lagar e onde hoje se localiza o super-mercado Pingo Doce. Não deixa de ser um tanto surpreendente que tenha sobrevivido quase até meados do século XX um revelim (construção externa de duas faces, que formam um ângulo saliente, normalmente situada diante da cortina ou muralha), assinalado como “arruinado” na planta de Miguel Luís Jacob, feita em 1755. Assinalável exemplo do sentido de reciclagem e de adaptação de estruturas antigas a novas necessidades.

A história da cidade de Moura é, como a de tantas outras, feita destes pequenos episódios. A história e o percurso das nossas investigações vivem de caminhos que se retomam, vezes sem conta, quantas vezes para constatarmos os nossos erros e as nossas insuficiências. Ai dos dogmáticos e dos infalíveis.

Voltei, uma vez mais, a um tema que pensava ter encerrado. Já deixei de dizer – quase aos 50 anos já não era sem tempo… - “nunca mais”. Este insignificante episódio fez-me acreditar que, por mais que os abandonemos, há temas que nos perseguem. Na investigação como em tantas outras coisas.


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Crónica publicada em A Planície de 1.1.2011

7 comentários:

Anónimo disse...

O Borges dizia que os temas é que nos escolhem a nós...
Um abraço, de ano novo.
Manuel Branco

Santiago Macias disse...

Referes-te, presumo, ao António Borges Coelho.

sousa rego disse...

Dr. Santiago essa fortificação ainda nos terá defendido dos nossos amigos ou inimigos espanhóis na guerra da restauração.Actualmente, a estrada do Sobral, pelo estado do piso será uma das melhores defesas dos tempos modernos,mas também factor de atraso e sudesenvolvimento e ainda, um atentado permanente à vida e integridade física dos seus utilizadores.Ali a culpa morre solteira ou não será bem assim?

Santiago Macias disse...

Sr. Sousa Rego

A referida via é uma estrada nacional e depende das Estradas de Portugal.

A seguinte informação está no respectivo site, com data de 22.10.2010:
"Esta empreitada na EN255-1 entre Moura e Sobral Da Adiça, distrito de Beja, prevê a reabilitação total do pavimento, a reposição e melhoria dos equipamentos de segurança e sinalização e a reformulação de alguns dos cruzamentos existentes. A execução desta obra tem um custo previsto de 1.160.000 euros e um prazo de execução de 180 dias."

Temos, manifestamente, um país desiquilibrado, com os investimentos concentrados no litoral. Que é a região com mais habitantes. É um pouco uma pescadinha de rabo na boca.

Vivo, em permanência, no interior do Alentejo desde 1986. As diferenças entre um país de primeira eum de terceira notam-se. Mas aí não temos qualquer exclusivo. Em Trás-os-Montes ou na Beira Interior já terá notado o mesmo.

Cumprimentos
SM

Curioso disse...

Caro Santiago, fugindo um pouco ao tema do post, comento os dois últimos "comentários".

De facto há um maior investimento no litoral, tanto no sector público como no privado (a central fotovoltaica e a fábrica de painéis solares em Moura são raras excepções).

No entanto gostaria de relembrar umas coisitas:
- o defendermo-nos afirmando que o vizinho do lado está igual ou pior não é o mais correcto;
- Também na Grande Lisboa podemos viajar por belissimas estradas com tantas condições ou piores que a estrada do Sobral. Algumas da responsabilidade dos municipios onde pertencem outras das Estradas de Portugal, mas o que não faltam são estradas que são autênticas armadilhas na Grande Lisboa (no meu caso particular consegui rebentar num ano dois pneus em buracos na estrada... e não era o mesmo). Escusamos de ir a Trás-os-Montes...

No entanto compreendo e já sei há bastante tempo o facto da referida estrada não ser da responsabilidade do municipio, tal como já foi sobejamente divulgado e que continua a haver pessoas a ignorar esse ponto. Mas como ignorância não é crime nem paga imposto!...

P.S.: Já agora, ignorava por completo da antiga existência dessa fortificação onde agora é o Pingo Doce... Mas também não pago imposto!

sousa rego disse...

Antes de mais peço desculpa pela falta do "b" no "subdesenvolvimento".O meu comentário decerto que não foi bem entendido.A questão que queria colocar é precisamente a de chamar a atenção para o seguinte: em situações desta natureza,mais a mais quando se trata de vias de comunicação do Estado,existem sempre responsáveis, pessoas físicas,que por acção ou omissão,permitiram que os cidadãos em geral as utilizem com todos os riscos daí advenientes.Depois é tudo uma questão das eventuais vítimas exercerem os seus direitos através das acções de natureza civil ou criminal.E a culpa nem sempre morre solteira como no caso da queda da ponte de "Entre os Rios".As provas por vezes estão "mais frescas".

Santiago Macias disse...

Infelizmente, quase sempre as coisas se diluem. E na hora da verdade, há pouca gente para dar a cara.