domingo, 29 de abril de 2012

STROMBOLI

Apenas a água principiou a ferver, com a revolução do peixe que se aproximava da superfície, rompeu a mais tremenda gritaria e algazarra, de que tenho memória, e que ainda redobrou ao aparecimento dos primeiros atuns. Começou então a toirada.
Sucedeu que o primeiro atum arpoado se escapou, e caído à água com tal velocidade parecia voar, jorrando sangue que o acompanhava de um rastro de púrpura. A assuada ao marujo infeliz foi medonha, e vi jeitos de o atirarem também à água. Mas é que os primeiros atuns que apareciam, tendo ainda campo avonde para nadar, fugiam das barcas, enquanto os marujos, abrindo os braços, e com grandes pancadas no costado das lanchas, os incitavam às sortes, como se fossem bois.
Isso, porém, durou pouco. Entre borbolhões de espuma assomou logo uma densa camada de peixe, e tão apertada pelo costado das barcas, que os marujos quase lhe davam às cegas, levantando uma cabeça a cada arpoada.
Viu-se então que o atum era de bom calibre e muito. Ao meu lado, um perito amador, mas de reconhecida autoridade, ia-o contando, e quando chegou aos quinhentos verificou-se que não fazia falta no copo, onde continuava a afluir em camadas igualmente densas.
O sangue e a água, misturados, soltavam-se aos cachões, envolvendo os peixes em línguas de púrpura cristalina, e ao centro da rede faziam remoinho, abrindo um poço fundo e largo, por cujas paredes transparentes giravam, desvairados, os grandes bichos cintilantes.
Dissera-me o meu hóspede que o Joaquim Negrão me preparava uma surpresa, e sem o ter esquecido eu pensava, com cepticismo, no que poderia haver mais surpreendente do que aquele espectáculo de colossal carnificina, com tal cenário, nunca igualado, nem aproximado pela fantasia do mais asiático dos imperadores romanos.
O contador já ultrapassara o milhar e ainda o peixe acudia em abundância, sendo algum de extraordinário tamanho. Eram os "velhos manhosos", observava um marujo, que só aparecem no fim. Com efeito, as camadas que vinham à superfície tornavam-se pouco a pouco menos densas, avolumando ainda mais as proporções dos "velhos manhosos" que se multiplicavam.
O Negrão, aproximando-se do meu grupo, para falar com o mestre da companha, bradou-me:
- "Agora vou-lhe mostrar um quadro da mitologia." - "Vamos lá ver", repliquei, se bem que pouco disposto ao entusiasmo, já embotado pela prodigiosa cena a que assistia. Depois de falar com o mandador, o Negrão gritou para a ré da barca: - "Bem, se não há mais nenhum, que venha cá o Serafim..." - "O Serafim, o Serafim!" pôs-se a clamar quase em coro a marujama, e um rapaz atarracado, embezerrado, e arruivado, como que lhe veio nos braços, pela amurada fora, até onde o Negrão estava. E ouvi este que lhe dizia: - "Não quero desculpas; é para já..."
Então o rapaz, depois de olhar entre envergonhado e receoso para o meu grupo, principiou a despir aquela quantidade de trapalhadas em que os pescadores se envolvem, mesmo de Verão, quando vão para o mar. E apareceu admiravelmente bem proporcionado e forte, com um tronco de coiraça grega, abaulado no peito e estio no ventre, os quadris estreitos, mas as coxas volumosas e de formidável musculatura. Tirante os pulsos, o pescoço, e os pés, que andavam tostados do sol, todo ele era de uma brancura marmórea. De pé, na borda da lancha, erguendo os braços e juntando as mãos, tomou um leve balanço e jogou-se à água, sumindo-se entre os peixes.
Mas em poucos segundos ele surgia, quase na extremidade oposta do copo, montando um enorme atum, que, para se desembaraçar da estranha carga, entrou a correr vertiginosamente, saltando sobre o outro peixe que lhe impedia a passagem, ou mergulhando subitamente, para reaparecer alguns metros mais longe, sempre com o tritão às costas, agarrado com a mão esquerda a uma das alhetas, agitando a outra mão no ar, e dando gritos de triunfo. O rapaz estava transfigurado; resplandecia de audácia e mocidade, entre as grandes salsadas de água rubra que lhe lambiam o corpo, e luzia, ao sol, como um vivo mármore cor-de-rosa.
Animados pelo exemplo, outros rapazes se atiravam à água, para cavalgar os peixes, mas nenhum tinha a segurança heróica, nem a graça helénica do Serafim.
A pesca fechou acima de mil e trezentas cabeças. Mais de "treze centos", como dizia a gente da companha. Fora, na verdade, uma copejada maravilhosa.
Tomámos o bote para regressar a terra. O sol ardia já como fogo, e em volta da armação formara-se um círculo imenso ensanguentado, onde as lanchas, carregadas de peixe, bordejando, abriam silhagens de carmim, que se lhes reflectia nos bojos das velas pandas.
Quando entrámos em águas limpas, senti a necessidade de me purificar, depois daquela monstruosa hecatombe, e atirei-me, nu, ao mar. Após vários mergulhos fundíssimos, até onde o peso morto do corpo me podia levar, passei debaixo dos braços um cabo que lançaram do bote e deixei-me rebocar para terra, já meio adormecido...


A ideia de colocar um excerto de Stromboli (Roberto Rossellini, 1950) não é de agora. Não era exatamente esta a cena que tinha em mente, mas um facto ocorrido há uns tempos levou-me a escolhê-la.

Perguntei a alunos de uma turma de licenciatura em História (12) e de uma turma de mestrado (12) "quem foi Manuel Teixeira Gomes?". De entre duas dúzias de alunos de grau superior, apenas 2 (dois) sabiam quem tinha sido. Os restantes nunca tinham ouvido falar de um homem que foi Presidente da República (1923-1925) e que assinou uma obra literária de reconhecido mérito. A culpa não é deles, bem sei...

O excerto que acima se reproduz faz parte do texto Uma copejada de atum, publicado na obra Agosto Azul.

1 comentário:

Lucrecia disse...

Passaram a conhecer. Talvez precisassem de voltar ao tempo de colégio e fazer uma leitura obrigatória com resenha e apresentação. Além de uma pesquisa em História sobre os principais aaontecimentos e personagens importantes e seus reflexos em nossa vida cujos resultados devem ser apresentados a todos. Só de birra.
Mania que tem as pessoas em não compreender que História é vida.Nossa vida de agora espelhada na vida de ontem.Hororosa mania de não ler!