quinta-feira, 7 de março de 2013

FINAL CUT



Há percursos que se começam, que se interrompem, que depois se retomam. Muitas vezes, quando se pensa que já está tudo arrumado. Ou quando, por qualquer razão, se desistiu. É essa a razão de ser desta pequena crónica. Trata-se de um história verdadeira.


Aos 17 anos rodei um pequeno documentário sobre um pintor e poeta. Era o “trabalho de curso” de um clube de cinema de amadores, que então frequentava. Espantosamente, o pintor levou-me a sério e sujeitou-se a filmagens em som direto, a encenações, nas quais pintava quadros, deixando-me entrar em sua casa e cumprindo (!) as minhas indicações. Era meu assistente de realização o filho do pintor, meu colega de liceu. O equipamento resumia-se a uma câmara de super-8, um formato hoje pré-histórico, e a um “spot” de iluminação. Tripé era coisa que não havia. Fotómetro muito menos.

Ao fim de uns meses, que meteram uma inauguração numa galeria de arte e tudo, comecei a montagem da “grande obra”. Tinha seis bobinas sem som e mais uma em som direto. Pedi uma pequena moviola emprestada e segui, com paciência e na solidão do meu quarto, a planificação que traçara. Cronometrando tempos, cortando e colando a fita. Entreguei-a mais tarde no único laboratório de som que, em Lisboa, fazia pistagens em super-8. Ou seja, que colava, na estreita margem da película, uma fita magnética para som. Passei a ter duas bobinas: uma grande com uma pré-montagem, de cerca de 10 minutos, outra mais pequena, com som direto, com 3 minutos.

E depois?

Depois nada. Comecei o curso de História da Arte e desisti de fazer Cinema. Não consegui arranjar um estúdio onde pudesse gravar o som que faltava. Perderam-se duas gravações que tinham sido feitas, na RDP, com poemas. O pintor morreu pouco depois. As bobinas e as notas de montagem recolheram a um dossiê, lá em casa. Viajaram, sucessivamente, de Massamá para a Salúquia, dali para a Rua de Arouche, depois para a de S. Pedro, até estacionarem em Mértola.

No passado mês de novembro, 32 anos depois do início do caminho, resolvi terminar o filme. Fui recuperar um velho sobrescrito, onde se conservavam umas folhas, às quais dera o pomposo nome de "argumento". Telefonei a um amigo cineasta e pedi-lhe ajuda. Fui a uma empresa que transcreve formatos e os passa para digital. Recuperei velhos temas musicais. Passei horas a pesquisar os sons que na altura idealizei. Pedi ajuda a um profissional da Rádio Planície para fazer “voz-off”. Constatei, com enorme surpresa, que a bobina em som direto resistira ao passar do tempo. O filme está agora em fase final de montagem. Sonorizado e com genéricos feitos como deve ser. Respeitei rigorosamente a planificação inicial.

O filme é bom? Nem por isso. Aos 17 anos temos a mais desmedida segurança da idade. Dá sempre mau resultado… O filme vale como objeto de juventude, para o qual se olha com uma certa ternura e nada mais.

Fui, durante a vida,  fazendo coisas assim. Retomando projetos, parecendo que os esquecia, mas afinal não. Como no caso da escavação de Moura, interrompida em 1990 e reiniciada 13 anos mais tarde. Começa-se e acaba-se. Mais depressa ou mais devagar. Nunca nada ficou, nem fica, para trás. Temporariamente, sim. Em definitivo, não.

Crónica publicada em "A Planície" (1.3.2013)

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