domingo, 18 de dezembro de 2016

RIBEIRA DA PERNA SECA - 18.12.2016

Texto lido hoje, durante a cerimónia na Ribeira da Perna Seca:

Poucas coisas ao longo da vida, muito poucas seguramente, me deixaram marcas tão fundas e tão inapagáveis como este processo da Ribeira da Perna Seca.

Um dos momentos mais marcantes ocorreu na noite de 29 de dezembro de 2009. A ribeira transbordara, uma vez mais. O acesso principal à aldeia estava cortado e tivémos de entrar, o José Maria e eu, pela Estrada dos Carapinhais, num percurso mais longo, por entre a escuridão e a chuva que ainda caía. Preparávamo-nos para ouvir um coro de reclamações, à chegada. O que aconteceu foi, para nós, muito pior. Havia um terrível silêncio, um misto de desalento e de tristeza se apossara dos moradores que vivem aqui nesta zona. Ouvia-se apenas aquele rumor da água a correr depressa, quando a ribeira começava a esvaziar lentamente.

Senti, nesse momento, vergonha. Senti, enquanto cidadão português, uma profunda vergonha. Tinha vergonha da nossa falta da capacidade financeira, só ultrapassada com um empréstimo bancário.  Tive vergonha dos governos que fomos tendo, dos seus boys, dos seus bajuladores e puxa-saquistas. Quase tive pena de vários dos meus interlocutores, não pela recusa em colaborar ou em financiar (que aconteceu), mas pelo seu distanciamento e pela sua indiferença.

Percebi o sentido da palavra "abandono". Percebi, em muitas ocasiões, a quem estamos entregues e a forma como o interior é deixado à sua sorte, por governos de gente muitas vezes indiferente e muitas vezes pouco capaz.

Uma pessoa com responsabilidades políticas locais [aqui do Sobral] dizia, em outubro de 2009, "… eu considero que a Câmara, por si só, não tem capacidade financeira para realizar a obra, mas tem de interceder junto de outras entidades…". A declaração inscreve-se na lusitaníssima lógica do "interceder", do "requerer", do "pedir" ou do "pedinchar" junto dos poderosos  (que tem no " ó sôtor faça lá um jeitinho" a sua expressão máxima). Nem nós nem os sobralenses temos de interceder coisa nenhuma. Temos direitos, que não foram respeitados. Precisámos de solidariedade e responderam-nos com legislação e com burocracia.

Dobrada a casa dos 50 anos olha-se o mundo, pela primeira vez, de forma diferente. Uma passagem de “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar, lido na juventude, faz sentido pela primeira vez: “assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte”. Deitamos contas ao tempo que passou e temos a certeza de estarmos a mais de metade do caminho. Impercetivelmente, passámos essa metade sem nos darmos conta. Foi tudo demasiado rápido e o tempo é, ele mesmo, agora mais rápido.

Olhando a minha linha da costa, penso muitas vezes na importância do dia de hoje e na importância desta obra e do contributo que, no meio de tantos, pude dar. O dia de hoje é um dos dias mais compensadores da minha vida. E esta é a obra mais compensadora, do ponto de vista pessoal, em que pude participar enquanto autarca.

Percebemos, em final de 2009, que não era possível avançarmos para a intervenção faseada que tinhamos preconizado. O resto da história é um conjunto de datas e de números, de nomes de empresas, que aqui pouco nos interessam.

Tenho orgulho no dia de hoje. Pela obra, de certeza que sim. Mas tenho orgulho sobretudo pela capacidade de resistência dos sobralenses. Pela amizade que tantos dos que aqui estão fizeram o favor de me oferecer, ao longo dos anos. Quem vive aqui, quem aqui resiste, merece todo o esforço de que formos capazes. Merece, sobretudo, o nosso respeito.

Vivemos, aqui no interior, num país fantasma.  Temos hoje  caminhos abandonados, pontes esquecidas, aldeias semi-despovoadas e um território que, aos poucos, morre às mãos da indiferença do outro Portugal, o do litoral, onde há uma realidade que nos parece, muitas vezes, coisas de ficção.

Nesse país fantasma viveram e resistiram, durante centenas de anos, centenas de gerações. As dos nossos antepassados. Artesãos, agricultores, professores, sapateiros, pastores, tecedeiras, perde-se o conto ao número e ao nome dos que por nada trocariam os horizontes do seu território por qualquer outro sítio do mundo. Nunca ninguém lhes perguntou quanto queriam por ficar nem quanto valia o seu amor à terra que os vira nascer. Muitos partiram, por não terem meios de subsistência.

Como diz a moda, nós somos devedores à terra. Assumamos essas palavras em sentido global. Somos devedores às nossas aldeias. Somos devedores aos que construíram este concelho. Somos devedores aos que trabalharam e trabalham os campos. Paguemos-lhes todos os dias. Mantendo as escolas, tentando reparar caminhos, comprando maquinaria e pondo-a ao serviço dos munícipes, investindo e fazendo obras.

A obra que hoje se dá por concluída resume tudo isto. Foi uma obra feita com firmeza, com determinação e contando convosco. Fizémos questão de assinalar o dia de hoje, porque essa é uma obrigação que temos para convosco. A política é isto, de uma forma muito simples. Estar próximo, ultrapassar dificuldades e avançar.

Recordo uma parte do que disse na tomada de posse, em 20 de outubro de 2013.

Durante a II Guerra Mundial, quando o esforço militar consumia todos os recursos das ilhas britânicas, foi sugerido ao primeiro-ministro Winston Churchill que cortasse nas verbas da cultura. O homem que conduziu a Inglaterra à vitória sobre a Alemanha recusou perentoriamente. “Se cortamos na cultura, estamos a fazer esta guerra para quê?”. (fim de citação)

É esse um dos tópicos do nosso combate quotidiano. E se nos referimos à cultura, não é à sua vertente literária e artística, apenas. Mas à necessidade de termos uma perspetiva cultural do nosso concelho e do mundo à nossa volta.

É essa perspetiva cultural que nos leva a reabilitar as nossas localidades. É por termos essa certeza que cedemos o terreno e colaborámos no financiamento da Escola Básica Integrada de Amareleja. É por termos essa convicção que interviémos nas escolas e as melhorámos. Foi assim em Santo Amador e em Santo Aleixo. É esse enquadramento cultural que nos leva a renovar redes de águas e a fazer obras como a da Ribeira da Perna Seca, no Sobral da Adiça. Sem gente não há futuro e sem condições para aqui vivermos não há gente. A equação é simples. Tão simples como simples e direta é a nossa determinação. Que é tão firme como a vossa determinação.

De uma coisa tenho hoje a certeza. As soluções e a força estão em nós. Em todos nós. Não há salvadores da pátria, nem profetas nem homens ou mulheres providenciais. Estamos todos nós, com o nosso empenho, o nosso sentido de luta e a nossa capacidade de concretização. Estamos nós e, como diz um velho amigo meu, a “infinita liberdade do espírito”. É a essa a minha firme convicção.

Obrigado, sobralenses!


O triunfo da cor e a placidez do tema estão bem de acordo com o início da tarde de hoje. Régate à Argenteuil está no Musée d'Orsay, em Paris. Foi pintada em 1872 por um muito jovem Claude Monet (1840-1926). E a cor e a placidez sobralenses vão a par do poema, de 1921, de Paul Éluard (1895-1952). Mesmo sem regatas, estava assim a ribeira, azul e luminosa.


La rivière
La rivière que j'ai sous la langue,
L'eau qu'on n'imagine pas, mon petit bateau,
Et, les rideaux baissés, parlons.

2 comentários:

mariana caeiro disse...

Um discurso emocionante dito por um presidente emocionado, Dr.Santiago Macias, na inauguração das obras e arranjo paisagístico da Ribeira da Perna Seca, que efectivamente não tem pernas e seca também não é porque quando chove alaga(alagava) tudo.À parte a brincadeira,foi uma obra importante, necessária e fundamental para o bem estar de muitos Sobralenses.
E como queremos sempre mais e melhor ficamos a aguardar próximas inaugurações de obras começadas e ainda não acabadas e também muito úteis para o bem estar do povo da nossa aldeia.

Anónimo disse...

Obrigada Santiago, pela obra e pelas palavras sábias que deixaste ontem no Sobral.
O meu pai foi um dos resistentes de que falas.Por nada deste mundo deixaria a aldeia.
E quando vinha a Lisboa, três dias já eram demais.
MEG