sexta-feira, 1 de setembro de 2017

AO FINAL DA TARDE EM SANTO ALEIXO

Aquele encontro foi tudo menos esperado. Um rapaz, de ar tímido e olhar calmo, estava sentado à minha frente, à mesa do petisco. Ele pouco petiscava, em verdade se diga. Os pais, gentilmente, foram-me enturmando. Às tantas, estou para saber como, saltou-se para os livros. O rapaz quer ser médico. O percurso escolar é brilhante, prémio atrás de premio, sem parar. De medicina quase não falou. De livros sim. De poesia mais ainda. Às tantas, estou para saber como falou-me em Robert Frost, “ the road not taken”. Pisquei os olhos. Robert Frost? Aos 18 anos? Continuou a falar, não muito, porque os tímidos só acordam mais tarde. Leu os clássicos em prosa, também. Saltou depois para a poesia de Baudelaire. Já não me atrevi a perguntar se lera “Les fleurs du mal”. Deve ter lido. Se não leu, lerá em breve. O meu espanto ia em crescendo. Também conhecia Cecília Meireles, que não sei se é do cânone, mas tem versos sensíveis e doces. Cecília Meireles é autora de outros tempos e morreu perto do ano em que o pai do João nasceu.


Talvez o João venha a ser médico. Os grandes médicos não são apenas clínicos. Houve-os cantores de ópera, como Álvaro Malta, músicos e poetas, como Miguel Torga ou Fernando Namora. Só vejo a prática da medicina ligada aos valores do espírito. Tenho a certeza que a carreira do João irá por ai. Falou, baixinho, que gostaria de se dedicar a causas humanitárias. Podes começar aqui pela tua aldeia, sugeri. Mas há um mundo imenso que vai precisar de ti. Recorda-te que estamos no topo da Humanidade. Há água potável, vacinas gratuitas, saneamento, escolas, bibliotecas, equipamentos desportivos etc… Para descobrires o outro mundo terás de fazer o caminho inverso ao dos que agora cruzam o estreito de Gibraltar. Isso é fácil fisicamente, mas não do ponto de vista mental. Se o fizeres, se para lá fores, leva a poesia. Leva contigo, em especial, as palavras de Rimbaud, o homem que se perdeu. Não te percas como ele.

Crónica publicada hoje em "A Planície".

Natureza morta com livros e violino, quadro de 1628
da autoria de Jan Davidszoon de Heem (1606-1684)

1 comentário:

José Manuel Campos disse...

A esperança de Santo Aleixo da Restauração está nesse João, mas também nos outros "Joãos" que emergem do anonimato e que estão apostados em defender a sua terra tal como o fizeram os seus antepassados heróis de sempre.