quinta-feira, 4 de junho de 2020

UM POUCO MAIS DE SOL

As semanas tinham corrido um pouco mal. Não muito mal, na verdade. Tinham sido sofríveis. Dois meses e meio de peste, trabalhar de manhã à noite, concluir artigos e livros, dar aulas à distância, falar com muita gente ao telefone, alguma incerteza, mas não em coisas decisivas, em temos pessoais. E estava em casa, com a família, pela primeira vez em muitos anos.

Em volta, havia e há bem pior. Empresas que fecham, o lay-off que se torna lei em on, o desemprego que aumenta, investimentos que foram ao ar e futuros adiados. O País respondeu com calma e percebeu-se a importância do Estado. Até o fascista de turno, que queria privatizar Saúde e Educação, se calou e foi pregar outras demagogias. O pavão da Iniciativa Liberal meteu, por agora, a viola no saco e remeteu-se a um benfazejo silêncio.

Razões de reclamação pessoais não tenho, portanto. Mas o mundo em volta tornou-se bisonho e algo sombrio.

Estava eu, na sexta, dia 29, num resmungar lento e introvertido, quando o telefone tocou. Eram 18.36 e o dia tinha sido como no “king”, quando damos vazas para negativos. Do outro lado, ouço a voz do António. Um velho e querido amigo vinha dar-me notícias. Estava manifestamente satisfeito. Acabara de rever mais um livro. Uma tarefa normal num historiador, um pouco menos normal quando se tem 91 anos. Como é o caso do António. Sem me dar tempo a respirar, desfiou o conteúdo do livro. Falou de colegas, e narrou-me um episódio surpreendente passado com Jorge Borges de Macedo. Elogiou-o e estamos de acordo que “A situação económica no tempo de Pombal” continua a ser, com 70 anos, um livro genial. Falou do Partido e da velha amizade com Álvaro Cunhal. Discorreu sobre Leibniz, tema que me é desconhecido, mas que o apaixona há muito. A meio da conversa, a luz abriu-se um pouco. Dei comigo a pensar “que razões tens tu para lamúrias, quando dás com este otimismo fantástico aos 91 anos?”. Dos tempos na prisão, no Forte de Peniche, saltou para os Mártires de Marrocos. Falei-lhe desse projeto em curso. Comentou, rapidamente, “como bem sabe, os mártires são-me familiares, fizeram parte do meu percurso no seminário”.

A dada altura, a conversa trouxe-me à memória um conto de Mário Dionísio em que um homem, só por assobiar uma melodia, anima a carruagem do elétrico. O António fizera-me ganhar o dia. Sem que ele soubesse bem porquê, agradeci muito ter-me telefonado. Foram mais de 20 minutos de luz e calor. Foi um pouco mais de sol, no final da tarde.

Crónica publicada em "A Planície"

1 comentário:

Anónimo disse...

Estamos, muitos, à espera desse livro, o novo volume da história de Portugal do Professor António Borges Coelho.
Dois abraços,
Manuel Branco