terça-feira, 1 de novembro de 2022

CAVEIRAS

Crónica para mourenses com mais de 50 anos.

Já só restam dois do grupo dos caveiras, “ativo” na vila e arredores entre as décadas de 60 e de 90 do século XX. Eram comerciantes e funcionários públicos. Jovens e inventivos, dados à farra e capazes das criações mais disparatadas. Quando me lembro deles, fico com a vaga sensação de estar ante a recordação de um filme italiano. Qualquer coisa de Mario Monicelli, Pietro Germi, Dino Risi… Filmes que eles, aliás, conheciam lindamente, das sessões do velho Cineteatro caridade.

O nome “caveiras” tinha raiz na localidade do concelho de Grândola. Com regularidade de metrónomo, o grupo por lá passava a caminho da Luz ou de Alvalade, ou em digressão borguística, sem fim definido. De Canal Caveira vinham com a recordação do bom vinho que por lá se bebia. O que era motivo mais que suficiente para atazanarem o juízo ao sr. João Filipe, proprietário do desaparecido Café Portugal.

O Café Portugal ficava na esquina da Rua dos Espingardeiros com a Rua da Assaboeira (onde agora está a esquina do “Clarabóia”). Tinha duas entradas, a principal pela Rua dos Espingardeiros, a lateral, que tinha dois degraus, pela outra rua. Detrás do balcão, o sr. João, que recordo como homem muito tranquilo, regia o sítio, com grande bonomia. As provocações com a qualidade do vinho servido no café eram constantes (que era uma zurrapa, que parecia pomada e mais isto e mais aquilo; vinho bom? só em Canal Caveira!). E tiveram um retorno. Cada vez que o grupo entrava (o “cada vez” era quotidianamente, esclareça-se), o sr. João Filipe disparava “atenção, que aí vêm os da caveira”. O nome pegou de estaca. Passaram a ser os Caveiras, com direito a número e tudo (o meu pai era o número 5).

As invenções eram múltiplas e não entrarei em detalhes. Recordei, há dias, no meu blogue, uma incursão a Huelva em que ocuparam o camarote VIP do estádio do Recreativo. Poderia explicar, entre muitas outras, como fizeram uma caçada noturna aos pássaros no forro da cadeia comarcã – provocando o pânico nos presos, que julgaram ter o edifício sido tomado por seres sobrenaturais – ou como se infiltraram num baile numa freguesia fazendo passar um deles pelo novo juiz de Moura. Ou como ajudaram um deles, num momento de aflição (“fulano de tal é belfo de tripa”, justificavam os outros), nas margens do Tejo. Um episódio escatológico, digno de Luigi Comencini. As histórias foram mais que muitas. Fizeram-me rir desalmadamente na minha juventude. Ainda hoje fazem.

Tenho saudades do Café Portugal, que deixou de existir quando comecei a ter idade para lá entrar sozinho. Tenho saudades do sr. João Filipe. E, bem entendido, tenho imensas saudades dos “caveiras”. Com quem comecei a aprender um certo sentido lúdico da vida.

Crónica publicada hoje, em "A Planície"

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