Corrinheiro ou currinheiro? Para o caso tanto faz. Nós dizíamos assim mas nenhuma destas palavras existe; talvez a palavra certa seja coronheiro (aquele que faz coronhas). O sentido bélico dado à árvore faz todo o sentido, mas já lá vamos. O pilriteiro ficava ao lado direito da curva, antes da ponte, à saída para a Póvoa. Ficava na umbria, o que nos dias mais escuros lhe dava um ar de mistério e de medo que a gente não conseguia explicar.
O pilriteiro foi abaixo no outro dia. Há árvores assim, que morrem de pé. E que têm de ser abatidas. O pilriteiro da ponte do corrinheiro era a nossa playstation, os pilritos os nossos DVD. Como nos jogos modernos havia níveis. O elementar, nos ramos mais baixos. O intermédio mais acima, o nível dos profissionais lá no pingurito. O pilriteiro era ponto de peregrinação obrigatória, qualquer que fosse o nosso poiso habitual. É claro que a geografia sentimental da nossa vila tinha outros sítios (a bica do Leão, o pego dos marmeleiros, o dique, as amoreiras da estrada do Sobral), mas nenhum deles tinha o grau de desafio e a exigência do pilriteiro da ponte do corrinheiro. Digo eu, mas outros dirão, decerto, coisa diferente.
Os pilritos chupavam-se depressa, pouca carne até se chegar ao osso. Convertiam-se então em arma letal. Quando comecei a escola primária os caroços eram arremessados com força através de canas. Sopradela aqui, sopradela ali, à cata dos inimigos mais odiosos. Com frequência, a actividade bélica acabava mal, um par de chapadas, armas confiscadas, amargura e castigos. Quando terminei a escola primária, as canas tinham dado lugar, sinal dos tempos, a tubos de plástico, sobras de trabalhos de electricidade, diligentemente pedidos na loja do sr. Chico Araújo. Nós gostávamos dele porque nos aturava com os pedidos de armas mas também porque tinha um Ford Cortina com uma buzina que fazia “muuu”, assim como uma vaca, para gáudio da malta. É claro que todos nós sonhávamos vir a ter um dia um Ford Cortina branco e de capota preta, com mudanças no volante e um banco corrido à frente, que fizesse “muuu”, como uma vaca, e da janela do qual pudéssemos alvejar mortiferamente os nossos inimigos mais odiosos com os caroços dos pilritos.
Nos últimos anos o pilriteiro envelhecera e ameaçava cair um dia em cima de quem lhe passava por perto. A popularidade de outros dias esfumara-se. Já não era um desafio. Já não fazia parte dos percursos dos mourenses mais novos. Era apenas uma árvore: raízes, tronco, ramos e folhas. Nada mais. A sentença estava ditada. Foi cortado e desapareceu para todo o sempre. Não havia outro remédio, mas, naquela manhã, ao chegar da Amareleja, não pude deixar de, rapidamente, rever os dias e as horas passadas à volta daquela e de outras árvores que fizeram, e fazem, parte da vida e do tempo de tantos de nós.
O pilriteiro foi abaixo no outro dia. Há árvores assim, que morrem de pé. E que têm de ser abatidas. O pilriteiro da ponte do corrinheiro era a nossa playstation, os pilritos os nossos DVD. Como nos jogos modernos havia níveis. O elementar, nos ramos mais baixos. O intermédio mais acima, o nível dos profissionais lá no pingurito. O pilriteiro era ponto de peregrinação obrigatória, qualquer que fosse o nosso poiso habitual. É claro que a geografia sentimental da nossa vila tinha outros sítios (a bica do Leão, o pego dos marmeleiros, o dique, as amoreiras da estrada do Sobral), mas nenhum deles tinha o grau de desafio e a exigência do pilriteiro da ponte do corrinheiro. Digo eu, mas outros dirão, decerto, coisa diferente.
Os pilritos chupavam-se depressa, pouca carne até se chegar ao osso. Convertiam-se então em arma letal. Quando comecei a escola primária os caroços eram arremessados com força através de canas. Sopradela aqui, sopradela ali, à cata dos inimigos mais odiosos. Com frequência, a actividade bélica acabava mal, um par de chapadas, armas confiscadas, amargura e castigos. Quando terminei a escola primária, as canas tinham dado lugar, sinal dos tempos, a tubos de plástico, sobras de trabalhos de electricidade, diligentemente pedidos na loja do sr. Chico Araújo. Nós gostávamos dele porque nos aturava com os pedidos de armas mas também porque tinha um Ford Cortina com uma buzina que fazia “muuu”, assim como uma vaca, para gáudio da malta. É claro que todos nós sonhávamos vir a ter um dia um Ford Cortina branco e de capota preta, com mudanças no volante e um banco corrido à frente, que fizesse “muuu”, como uma vaca, e da janela do qual pudéssemos alvejar mortiferamente os nossos inimigos mais odiosos com os caroços dos pilritos.
Nos últimos anos o pilriteiro envelhecera e ameaçava cair um dia em cima de quem lhe passava por perto. A popularidade de outros dias esfumara-se. Já não era um desafio. Já não fazia parte dos percursos dos mourenses mais novos. Era apenas uma árvore: raízes, tronco, ramos e folhas. Nada mais. A sentença estava ditada. Foi cortado e desapareceu para todo o sempre. Não havia outro remédio, mas, naquela manhã, ao chegar da Amareleja, não pude deixar de, rapidamente, rever os dias e as horas passadas à volta daquela e de outras árvores que fizeram, e fazem, parte da vida e do tempo de tantos de nós.
Se não estou em erro o modelo do Ford era este. Foi um carro popularíssimo no final da década de 60, início da de 70. Ainda hoje conta com uma enorme legião de fãs. Uma rápida pesquisa na net permitiu localizar chats, foros, páginas web etc.
O texto foi publicado há pouco tempo no jornal A PLANÍCIE.
A árvore da minha infância foi a alfarrobeira do parque infantil, á volta da qual passei muitas horas, á espera de vez para subir para os "aviões".
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ResponderEliminarAgora que se fala no assunto, é verdade que essa alfarrobeira também desempenhou parte importante nas nossas vidas. Escusado será dizer que os tais "aviões" (dos quais caí várias vezes, em desafortunada carreira aeronáutica) não cumpriam quaisquer normas de segurança. Mas a malta divertia-se à brava...
ResponderEliminarGostei muito do teu texto. Fui à minha infância buscar também "as minhas árvores" e elas chegam através da minha memória olfactiva. Sabia que era primavera porque um limoeiro e laranjeira que viviam lado a lado no quintal do vizinho Zé, na rua dos Amarelos, davam-me os cheiros dessa estação. Quando desço essa rua do meu pai, regresso à infância e ainda sinto os cheiros de um tempo distante. Delfina Oliveira
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