A Salúquia é o meu bairro. À primeira vista, a Salúquia não parece grande coisa. As ruas foram traçadas a régua e esquadro, sempre a direito que dá menos trabalho. Não houve tempo nem dinheiro para jardins quando a Salúquia foi feita e lá se despejou a classe operária de Moura. Nem jardins nem ruas decentes. Até 1974 boa parte da Salúquia tinha ruas em terra e quando chovia, Deus meu, a lama tomava conta de tudo, sujando as paredes e as casas e deixando a rua num estado tal que a avó Joaquina todos os dias se via obrigada a preparar uma nova toilette para a manhã seguinte. Assim como os ricos, que nunca repetem o guarda-roupa.
A Salúquia nunca foi um bairro como os outros. Ninguém, até há trinta anos, se preocupava muito com a Salúquia. As placas com os nomes das ruas eram, muitas vezes, uma simples chapa preta com letras a branco e a iluminação pública era diferente, muito diferente, da das ruas do centro, onde viviam os poderosos de então. A Salúquia de hoje não tem, a esse nível, nada a ver com a de então.
A minha família é da Salúquia. A Júlia vivia na Avenida da Salúquia, no 43, o João no 16 (que hoje tem o nº 34). As casas eram em frente uma da outra, o que simplificou as coisas. Namoraram (5 anos e 10 dias, à janela), casaram e tiveram 3 filhos. Uma história banal e idêntica a muitas outras da Salúquia.
A casa onde o João viveu é hoje o nº 34 porque a avenida tem agora mais casas. Na parte de dentro da porta ainda se conserva uma cruz de cana, pregada à pressa pelo João, já lá vão 60 anos, porque nessa noite o diabo ia andar à solta. E com uma Terra tão grande logo o diabo haveria de escolher a Salúquia.
A Salúquia não tem monumentos, nem igrejas, nem centro histórico. Não há circuitos turísticos, nem lojas de roupa cara. A Salúquia é um bairro com gente dentro. Todas as manhãs sou acordado pelos comentários de quem passa e de quem se encontra à esquina. As esquinas do bairro são a mais complexa e completa rede de informações do mundo. Casamentos, arrufos, traições, má-língua, acidentes e desgraças, doenças, tudo, mas mesmo tudo, é passado a pente fino em conversas rápidas. Na esquina seguinte, novo encontro e mais conversa. Uma vez, numa grande cidade do norte da Europa, os meus passos faziam eco na rua deserta, a meio da manhã. Foi o dia, em toda a minha vida, em que tive mais saudades da Salúquia.
A Salúquia é o reino das mulheres, e das batas de algodão vestidas pelas mulheres. É vê-las, às mulheres da Salúquia, caiando pela manhã, nas compras, nas idas à loja do Joaquim Romão, tomando conta dos netos. É vê-las, às mulheres da Salúquia, de bata, conversando às esquinas.
Os cafés e as tabernas de ontem já não são os mesmos. Os donos já não são os mesmos mas a alma dos sítios não se perdeu. Num café que já não existe bebi o primeiro poejo, durante um Ajax-Juventus, em Maio de 1973, um poejo num copo minúsculo que durou quase até ao fim do jogo, sob o olhar atento do Francisco, que não permitiu a segunda rodada. Mas não era esse o sítio que mais curiosidade me causava. Havia outro, em plena Avenida, daqueles com porta à filme de cowboys, onde se entreviam um cartaz do grande Tony de Matos e outro do infalível Armando Soares, a olhar de lado, a olhar para o touro com cara de mau, espera aí que já vais saber o que é uma manoletina e um passe de peito. Dessa taberna eu gostava mais, mas uma venda não era sítio para rapazes.
O resto da alma da Salúquia está na rua, que é tomada todas as noites de Verão pelos habitantes. Cadeiras à porta e completa-se então a conversa que se deixou a meio há umas horas. Os condutores de fora não percebem que as ruas não lhes pertencem e enfurecem-se contra a Salúquia. E quem lá mora vinga-se, desafiando os carros como Armando Soares desafiava as feras e olhando para os condutores como se eles fossem invisíveis.
São todas essas pequenas coisas que fazem a beleza de uma bairro. Os putos a cirandarem, os sons, as mulheres, a loja do Joaquim Romão, as pessoas que usam a rua como se ela fosse, e é, o prolongamento da casa. São coisas que há noutros bairros, dir-se-á. Talvez, mas o meu bairro é a Salúquia.
Há um poema célebre que termina com “o rio da minha aldeia não faz pensar em nada./ Quem está ao pé dele está só ao pé dele”. É essa a beleza do meu bairro, aquele sítio chamado Salúquia e onde a primeira casa da família foi construída, por volta de 1925. Oitenta anos, cinco gerações e três casas depois, continuamos na Salúquia.
A Salúquia nunca foi um bairro como os outros. Ninguém, até há trinta anos, se preocupava muito com a Salúquia. As placas com os nomes das ruas eram, muitas vezes, uma simples chapa preta com letras a branco e a iluminação pública era diferente, muito diferente, da das ruas do centro, onde viviam os poderosos de então. A Salúquia de hoje não tem, a esse nível, nada a ver com a de então.
A minha família é da Salúquia. A Júlia vivia na Avenida da Salúquia, no 43, o João no 16 (que hoje tem o nº 34). As casas eram em frente uma da outra, o que simplificou as coisas. Namoraram (5 anos e 10 dias, à janela), casaram e tiveram 3 filhos. Uma história banal e idêntica a muitas outras da Salúquia.
A casa onde o João viveu é hoje o nº 34 porque a avenida tem agora mais casas. Na parte de dentro da porta ainda se conserva uma cruz de cana, pregada à pressa pelo João, já lá vão 60 anos, porque nessa noite o diabo ia andar à solta. E com uma Terra tão grande logo o diabo haveria de escolher a Salúquia.
A Salúquia não tem monumentos, nem igrejas, nem centro histórico. Não há circuitos turísticos, nem lojas de roupa cara. A Salúquia é um bairro com gente dentro. Todas as manhãs sou acordado pelos comentários de quem passa e de quem se encontra à esquina. As esquinas do bairro são a mais complexa e completa rede de informações do mundo. Casamentos, arrufos, traições, má-língua, acidentes e desgraças, doenças, tudo, mas mesmo tudo, é passado a pente fino em conversas rápidas. Na esquina seguinte, novo encontro e mais conversa. Uma vez, numa grande cidade do norte da Europa, os meus passos faziam eco na rua deserta, a meio da manhã. Foi o dia, em toda a minha vida, em que tive mais saudades da Salúquia.
A Salúquia é o reino das mulheres, e das batas de algodão vestidas pelas mulheres. É vê-las, às mulheres da Salúquia, caiando pela manhã, nas compras, nas idas à loja do Joaquim Romão, tomando conta dos netos. É vê-las, às mulheres da Salúquia, de bata, conversando às esquinas.
Os cafés e as tabernas de ontem já não são os mesmos. Os donos já não são os mesmos mas a alma dos sítios não se perdeu. Num café que já não existe bebi o primeiro poejo, durante um Ajax-Juventus, em Maio de 1973, um poejo num copo minúsculo que durou quase até ao fim do jogo, sob o olhar atento do Francisco, que não permitiu a segunda rodada. Mas não era esse o sítio que mais curiosidade me causava. Havia outro, em plena Avenida, daqueles com porta à filme de cowboys, onde se entreviam um cartaz do grande Tony de Matos e outro do infalível Armando Soares, a olhar de lado, a olhar para o touro com cara de mau, espera aí que já vais saber o que é uma manoletina e um passe de peito. Dessa taberna eu gostava mais, mas uma venda não era sítio para rapazes.
O resto da alma da Salúquia está na rua, que é tomada todas as noites de Verão pelos habitantes. Cadeiras à porta e completa-se então a conversa que se deixou a meio há umas horas. Os condutores de fora não percebem que as ruas não lhes pertencem e enfurecem-se contra a Salúquia. E quem lá mora vinga-se, desafiando os carros como Armando Soares desafiava as feras e olhando para os condutores como se eles fossem invisíveis.
São todas essas pequenas coisas que fazem a beleza de uma bairro. Os putos a cirandarem, os sons, as mulheres, a loja do Joaquim Romão, as pessoas que usam a rua como se ela fosse, e é, o prolongamento da casa. São coisas que há noutros bairros, dir-se-á. Talvez, mas o meu bairro é a Salúquia.
Há um poema célebre que termina com “o rio da minha aldeia não faz pensar em nada./ Quem está ao pé dele está só ao pé dele”. É essa a beleza do meu bairro, aquele sítio chamado Salúquia e onde a primeira casa da família foi construída, por volta de 1925. Oitenta anos, cinco gerações e três casas depois, continuamos na Salúquia.
.
Texto publicado no jornal A Planície em 1 de Outubro de 2004.
Texto publicado no jornal A Planície em 1 de Outubro de 2004.
Fachada do nº 34 da Avenida da Salúquia, no dia 22 de Abril de 2009.
"A Salúqia nunca foi um bairro como ous outros" pode ler-se na peça. Porque será? Talvez pelo facto do senhor Vereador lá habitar..não acha?
ResponderEliminarEvidentemente que sim. Não tanto o "senhor vereador" mas antes de mais o Santiago Macias. As nossas memórias prendem-se aos sítios onde vivemos.
ResponderEliminarA cada um a sua Salúquia, poder-se-á dizer.
Sobre este post dois apontamentos e um agradecimento:
ResponderEliminar1.º - A inveja que senti ao ler sobre o ambiente da Salúquia... quase me deu vontade de ter crescido, de viver e gerar novas vidas num local mágico assim...
A inveja é devida ao facto de ter crescido num tempo diferente, numa cidade relativamente grande, numa rua com trânsito. As brincadeiras faziam-se num vão de escada, andávamos de bicicleta no terraço e de patins em casa. O ponto alto do ano eram as idas à aldeia, onde podia extravasar os limites da casa e correr livre pelo campo, pelas ruas... e sem a presença e a observação indesejada dos adultos!
2.º - Ainda assim a minha rua, o meu bairro é (e será) sempre especial, sempre mágico, onde todos me conhecem ainda que nem todos saibam o meu nome (sou conhecida pela alentejana, pela alentejanita ou até mesmo pela filha do alentejano), é o sítio para onde quis voltar quando acabei o curso porque, por pior que seja, é o MEU sítio! Por estes motivos é fácil de compreender o amor, o encanto, o fascínio, demonstrado pela Salúquia...
3.ª - Obrigado pela partilha da vivência da Salúquia e de tantas outras coisas...