segunda-feira, 25 de maio de 2009

MAR DO MEIO

Durante muitos séculos a história do mar do meio foi a história do mundo. O mar era o centro do mundo. O mar tinha barcos e homens. E, dizem, monstros e sereias. Dos monstros e das sereias há muito que ninguém ouve falar. Os homens tomaram conta do mar e das suas margens. Uma densa trama de caminhos em breve percorreu as águas e a terra firme. Depois o comércio deu um sopro de vida aos caminhos do mar. Metais e pedras ornamentais, as madeiras, os tecidos luxuosos e os perfumes do Levante fizeram com que aldeias outrora incógnitas prosperassem e passassem a ser cidades. Naquela baía antes deserta nasceu Tânger; no estuário de pescadores onde só havia pescadores ergueu-se o esplendor de Alexandria. As cidades tornaram-se metrópoles populosas e cada vez mais ricas. Mármores e pórfiros e dioritos criaram a eternidade das formas e aos poucos encheram as praças urbanas. Por toda a parte se viam as imagens dos deuses e de homens semelhantes a deuses. Durante muitos séculos, uns e outros foram celebrados com magnificência. Em honra dos deuses e dos homens se construiram templos e se ergueram muralhas, igrejas, mesquitas e sinagogas.
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Isso foi há muito tempo. O centro do mundo afastou-se, entretanto, do mar do meio. Procuramos as cidades e não as encontramos. Perdemo-nos, porque os seus nomes mudaram. Somos conduzidos, sem bússola nem agulha de marear, de sítio em sítio, à procura de uma história e de um tempo que já não existem. Não sabemos que terra é esta. Nunca estivemos neste porto. É-nos estranho o perfil abrupto da ilha onde acabamos de chegar. Tacteamos mapas antigos, procuramos abrigo junto de Avieno e de al-Idrisi. Os caminhos e as cidades de outrora permanecem, ainda assim, solitários e secretos.
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Mas a vida continua a passar por ali. A vida vai além, ao colo do rapazito que brinca numa rua perdida da cidade na margem sul do mar do meio. Está nos gestos lentos do homem que fuma narguilé na noite do Cairo. Acompanha o passo do homem que, absorto, percorre as arcadas de Florença. A vida passa mansamente por entre o bulício dos mercados, entra no nevoeiro denso dos banhos, corre nas vozes que ouvimos nos terraços de Halfaouine e de Mar Girgis. Nas margens do mar do meio o ritmo da vida é tão antigo como o mar ele mesmo. As quatro estações do ano conhecem ainda uma sequência sem alterações. Os hábitos de vida são ainda quase iguais, mas a cada ano que passa talvez um pouco menos. A carroça feérica de flores de papel em muitas cores que, à força de mula, dá voltas e mais voltas à esquina da rua Umar al-Mukhtar, em Tripoli, é a mesma, a mesmíssima, em que, há muitos anos, fui à romaria lá para os lados do Malagon, em Paymogo. As tradições morrem com lentidão mas de vez, e já ninguém se lembra que o califa al-Mustansir foi fatalmente colhido ao lidar um touro, numa noite cálida de Marrakech… As placas tectónicas separam-se, o sul e o norte também.
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O Mediterrâneo é um mar de gente e uma babel de ruas. O mar do meio é uma babel de casas e um dédalo de vozes. As cidades em volta do mar, cheias de vozes e de gente, são brancas. O branco das paredes reflecte-se nos lenços e na timidez das mulheres. São cidades discretas e, às vezes, mesmo um pouco tristes. Em muitas delas não há turistas, porque os turistas não gostam de cidades belas mas um pouco tristes e porque os turistas querem quase sempre um pouco mais que a bruma que envolve as baías e os portos do mar ao entardecer. As cidades do Mediterrâneo estão entregues a si, à sua história, aos milhares de anos sedimentados no subsolo, aos muros que se esfarelam. São belas assim, de ar colonial já sem colonos, com as paredes brancas e as persianas azuis, com o seu ar um pouco triste e com a bruma e as ruas que assomam ao longo dos portos.

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As cidades do mar são feitas de ruas estreitas e misteriosas, sem luz, de casas sem idade e onde o tempo não corre. Quando nelas entramos resistimos a voltar para o mundo, talvez por causa das fontes que correm todo o tempo no centro dos pátios das casas, com a água a esgueirar-se por entre azulejos azuis. Talvez por causa da quietude e do silêncio. Talvez por causa do perfume da pele das mulheres do mar do meio. Às casas das cidades só chegam os sons distantes do mundo. Mas os pátios, os das casas, os das mesquitas e os dos mercados, são, afinal, o centro do mundo e é à volta deles que belas mulheres rodopiam, envoltas em túnicas e em perfumes. As mulheres dos pátios de Halfaouine e de Chefchaouen rescendem a rosas. E a lírios, também.

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Sem o saberem, os arredores das cidades guardam memórias de um mundo antigo. Ouçamos a cadência sempre igual dos alcatruzes das noras, onde “a água cantava / a sua copla plebeia”. Deixemo-nos ir pelos jardins do mar do meio, aqueles onde a rama das oliveiras se mistura com o aroma das laranjeiras, dos damasqueiros e das romãzeiras. Os jardins estão fechados nos seus muros e são percorridos por fios de água bem ordenados. Os hibiscos e a sombra das figueiras fazem parte desses labirintos com que se pretendia imitar os jardins do Paraíso, que tinham rios e aves que nunca ninguém viu. Fora das cidades do mar está esse mundo de calor e de sol e de sombra, de calor e de luz e de sombra.
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O Mediterrâneo acaba onde deixamos de ver as oliveiras e as figueiras. É uma verdade antiga e bem conhecida. Os caminhos do mar estenderam-se para além dessa verdade. Os caminhos seguiram os passos da cegonha preta e dos cucos. Tomaram o exemplo da incansável gaivina ártica. Levados pelo harmattan, o terrível vento do deserto, foram para lá do grande mar de areia e chegaram até ao coração negro da Terra, onde a pele do mar do meio escurece pouco a pouco. Mais para sul, já não há muros brancos do catálogo típico das ruas do mar do meio. São cidades onde não chegaram os ecos do mundo antigo e não há arqueologia para ver, nem monumentos de um passado remoto para visitar. Entre as águas do Níger e a terra de tom pardacento ficam os ecos do Mediterrâneo, que um dia chegaram até Gao e até Tombuctu. Por lá ficaram presos aos muros das mesquitas e à placidez dos que não cuidam do passado porque também lhes foge o futuro.

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As maravilhas de Tombuctu pereceram por entre o peso da decadência, e as cúpulas douradas de que falavam os viajantes parecem um delírio saído das raízes do sonho. Os relatos dos aventureiros são a nossa máquina do tempo. Regressemos, então, à orla do mar do meio. Admiremos, por debaixo dos séculos, as metrópoles que outrora foram e que não voltarão a ser. A melhor altura para retroceder na História é nesses fins de dia em que os turistas já partiram e apenas o vento se ouve nos canaviais. É assim em Leptis Magna, onde o porto se esconde lá longe e onde o sítio de entrada dos navios é agora uma praia na qual mal se percebe a barra. Corramos até lá, sob um sol furioso, e onde apenas as cobras, que cruzam ao longe o caminho, dão sinal de vida. É assim em Tipasa, onde o Mediterrâneo já bate nos muros das casas. Desaparecido o cais, o mar venceu a terra e começa a haver cada vez mais água e cada vez menos cidade. Passemos a basílica de Alexandre, até ao sítio onde Camus contemplava o Jebel Chenoua. Paremos aí, porque aquilo que a ele o inspirava é para nós invisível. É assim em Tróia, por entre rio e mar, no meio daquilo que resta da cidade de outrora. Detenhamo-nos junto ao Atlântico e tentemos descortinar uma parte do que desapareceu e que está algures sob as ondas. É assim em Cartago, onde a cidade antiga já quase desapareceu no meio dos quarteirões de vivendas espaventosas. A memória de uma Roma a sul já quase não passa de memória e lixeiras suburbanas ocultam os vestígios dos primeiros tempos da Cristandade.

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É assim em todas as cidades esquecidas do mar do meio. O esplendor da decadência é mais visível onde Roma passou. A decadência do poder é sempre mais esplendorosa do que qualquer outra. Amontoam-se por toda a parte, com a ordem do caos, milhares de colunas e capitéis, frisos, entablamentos, mármores, calcários. Não há museu onde caibam, não há museu que os queira. Os arqueólogos escolhem as matérias com a melancolia de quem percorre uma ementa demasiado longa. O resto fica de fora, e as cidades esquecidas mergulham todos os dias um pouco mais no olvido. Para lá dos teatros, dos hipódromos e da magnificência do poder estão vidas esquecidas que nunca desvendaremos e que nunca ninguém conhecerá ou quererá conhecer.
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A história do Mediterrâneo ainda está a ser escrita e há-de ser lida um dia.











O texto é do livrinho que foi apresentado na passada semana, durante o Festival Islâmico. As fotografias são das duas capas (Argel, à esquerda; Marrakech, à direita). Mar do meio é uma edição da Câmara Municipal de Mértola.

8 comentários:

  1. Este post não ter comentários deve doer-te LOL

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  2. Que lhe havemos de fazer?

    Olhe, divirta-se!

    Ou melhor,

    Carpe diem!

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  3. Valeu a pena atravessar a Mancha para estar em Métola nesse fim de tarde...

    Dulcineia

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  4. Lá vai o quarto.

    Tal qual a Dulcineia. Com a diferença que apenas viajei no Alentejo.

    Flor

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  5. Caro Santiago, meia verdade.

    Também há flores nos jardins. E no campo, nas cidades, nas casas, no Mar do Meio...e até no ser humano.

    Flor

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  6. ahahahahah.aparceram os comentários!!! encomendados? ou do autor em vários etrónimos?

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  7. Nem encomendados nem de "etrónimos"...

    Quanto à Flor, é claro que tem toda a razão.

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