segunda-feira, 31 de agosto de 2009

JARDIM DAS DELÍCIAS

O ano lectivo de 1984-85 foi marcado pela frequência da cadeira de História da Arte Contemporânea. O professor era um homem notável, Manuel Rio-Carvalho, grande especialista de Arte Nova, amante de ópera e um excelente comunicador. Passou-nos guia da marcha para o Diálogo sobre Arte Contemporânea, que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, entre Março e Julho de 1985.
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Houve de tudo um pouco, mas a minha memória ficou marcada pela tarde do dia 13 de Abril. Wolf Vostell apresentava uma ópera fluxus, intitulada Jardim das Delícias. Embora já conhecesse algumas das obras de Vostell, e não tivesse ficado mesmo nada convencido com a Homenagem a F. Garcia Lorca, decidi ir. Confesso que na altura pensei que o Jardim das Delícias fosse uma alusão ao célebre quadro de Hyeronimus Bosch.
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O ambiente não era muito encorajador. Uma sala na penumbra, umas mesas de madeira, alfaces sobre as mesas e galheteiros. Não havia cadeiras, pelo que grande parte dos espectadores optou por se sentar no chão. A "ópera" começou. Não havia músicos, mas sim uma fita magnética com sons. Identificava, no meio de uma estridência que fazia recordar um Boeing 707 a descolar, alguns excertos de cante jondo. Pouco mais. Ao fim de uns minutos, e sempre com vontade em ter uma visão positiva das coisas, perguntei ao meu companheiro do ocasião: "As alfaces devem ser para a malta comer. Vamos a isto?". Mal me tinha levantado quando ele me berrou: "Baixa-te!". Um segundo depois, um galheteiro esborrachava-se com fragor acima da minha cabeça. Escondi-me detrás de um reposteiro. Durante cinco minutos foi o caos. Alfaces e galheteiros voavam em todas as direcções. Um grupo de jovens - soube mais tarde que eram estudantes de escultura das Belas-Artes - ergueu uma mesa ao alto e envolveu-a, e a algumas alfaces, em papel higiénico. De onde saiu o papel higiénico foi coisa que nunca percebi.
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A páginas tantas, e já com as munições esgotadas, entra na sala um furioso Vostell. Segue-se uma discussão incongruente e inconsequente entre Vostell e os estudantes. Estes achavam que tinham interagido com a ópera dele, Vostell, em crise mística, gritava "as alfaces são criaturas de Deus!". A coisa acalmou e o fluxo de ruído continuou. No descaramento dos meus 21 anos ainda me cheguei junto do autor para lhe perguntar se esperava aquela reacção. A resposta, que não esquecerei, foi: "Se não te importas, ouvimos primeiro a música; depois discutimos a ideia desta ópera; as alfaces era para comermos durante a discussão". Voilà...
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Na segunda-feira seguinte fui obrigado, por entre a hilaridade da turma, a relatar os acontecimentos de sábado. O tempo se encarregou de me confirmar que uma coisa é a forma como os autores fazem a leitura das suas obras e que uma obra, bem diferente, é a apropriação que o(s) público(s) faz(em) dela(s).
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De cima para baixo: Wolf Vostell (1932-1998), escultura e instalação.

Vostell viveu grande parte da sua vida em Espanha. Os comentários/obras sobre a sociedade contemporânea, tantas vezes feitos em obras de arte que usavam como ponto de partida o lixo electrónico, está patente no museu que se construiu perto de Malpartida de Cáceres.

Sites a consultar:

http://www.museovostell.org/

http://www.wolf-vostell.com

Já agora, O jardim das Delícias, dos inícios do século XVI, está patente no Museu do Prado, em Madrid. O Museu Nacional de Arte Antiga tem em exposição uma outra obra célebre de Bosch, As tentações de Santo Antão.

3 comentários:

  1. Ainda de "No bosque do espelho", de Alberto Manguel: Borges disse um dia, ao ler a tradução em inglês da obra "Vathec", do inglês Beckford,que "o original é infiel à tradução".
    Mas a graça é mais "picante": é que W. Beckford,escreveu a obra em francês e a tradução em inglês, sem autorização do autor, apareceu antes do original em francês.MJCB tradução em
    Manuel J. C. Branco

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  2. Eu estava lá! Lembro-me de excertos da discussão, com o Vostell a acusar o público português de não perceber nada por não partilhar da experiência comunitária das alfaces, e de alguém dizer que em Portugal havia poucos vegetarianos e que por isso deveria ter usado chouriços. Antológico!

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