A minha cadeira mexeu um pouco, não muito, alguém a puxava. Sem tempo para pensar, virei-me e dei de caras com uma mulher, que não era nova nem velha, nem bela nem feia. O "ajude-me, por favor!" soou logo a seguir e fiquei a olhar para os olhos dela, que eram olhos de medo e de desespero. Mas só depois é que pensei nisso, que os olhos dela eram de medo e de desespero. Naquele momento, fitei só a mulher, nem nova nem velha, nem bela nem feia, que se agarrava à minha cadeira e me pedia ajuda. O café calara-se e só a estúpida da telenovela "desconfie dessa mulher, meu amor" soava no aparelho, lá no alto. A mulher continuava agarrada à minha cadeira, puxando atrás de si uma miúda, quinze dezasseis anos, que puxava em sentido contrário e tinha, também, olhos de medo e de desespero, como os da mulher. "Ajude-me a levar a minha filha para casa!", primeiro um pedido, depois uma súplica, depois um sussurro, a voz mais baixa, cada vez mais baixa, a olhar-me com aqueles olhos assustados. O café calado, a filha da puta da telenovela com a conversa do costume "meu bem, eu te adoro, não me deixa não" e por aí fora, e os meus amigos e eu a olharmos para a mulher e para a miúda, mudos, quedos, e sem nada para dizer ou fazer. Um minuto antes, tínhamos o Mundo na mão, discutíamos o Iraque, o Governo, o futuro, tínhamos todas as certezas e todas as respostas e agora uma mulher dizia-me, com medo e desespero, "ajude-me, por favor!", e eu nada, nem um som, nem uma ideia. Apetecia-me fugir porta fora, deixando osamigos, a mulher, a miúda, o café e a telenovela imbecil, mas só consegui ficar a olhar para as duas, paralisado e mais idiota que a televisão. "Ajude-me a levar a minha filha para casa, que tem lá um filho com um ano e meio!". A garota tinha ar disso mesmo, de garota, vestia de cor-de-rosa, é a única cor que me ocorre quando penso nela. Poucos, muito poucos anos antes, tinha bonecas e uma festa de anos na escola. "Ajude-me, por favor!", as bonecas estavam esquecidas ou talvez não, as festas de anos eram uma recordação em papel de fotografia. Ficava agora uma miúda de quinze dezasseis anos, com um bebé de um ano e meio, olhos de medo nela e na mãe, que talvez pensasse "e se eu lhe falto? o que vai ser dela?", mas que naquele momento só a queria levar para casa. Continuei mudo, por uma eternidade de meio minuto, a olhar para as duas e para os olhos das duas e para o desespero das duas.
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"Vá com a sua mãe para casa!", berrou, enfim, um homem gordo de bigode, encostado ao balcão do café. A mulher arrastou a miúda de cor-de-rosa, tavez fosse outra cor mas isso pouco importa, pela porta fora, perdendo-se na noita fria de Castelo Branco. O silêncio continuou por um instante, antes de se retomar o barulho e do som da telenovela "meu bem, meu amor" continuar, idiota como antes. Saímos do café pouco depois, pela mesma rua fria onde pouco antes a mulher arrastara, com medo e desepero, a miúda de cor-de-rosa.
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Crónica publicada em A Planície, em 1 de Fevereiro de 2005.
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Que imagens melhor exprimem a angústia? A resposta é banal, mas sincera. Mais do que quaisquer outros, os pintores expressionistas deram corpo a esse sentimento. Resisti a reproduzir O grito, mas este A onda (1921), de Edvard Munch (1863-1944), e a Natureza-morta com máscaras (1896) de James Ensor (1860-1949) levam-nos, em linha recta, a um universo torturado.
Emocionou. Gostei muito.
ResponderEliminara novela que estavam a ver era da TVI ?
ResponderEliminar"La Maison du Vitrail" uma loja do XV bairro de Paris onde um dia, na véspera do Natal entrei (melhor tentei) para comprar uma prenda acompanhada do meu filho Raphaël (3 anos nessa altura).
ResponderEliminarNa parede da loja um grande vitral reproduzia "O Grito". O Raphaël olhou para o vitral, olhou para mim e desatou a chorar.
A mim também me angustia esse quadro...O melhor deixa-me pouco à vontade o que para mim ainda é pior porque nem sei explicar bem o que sinto.
Imagino que fosse uma coisa dessas, amigo Jorge...
ResponderEliminarQue vidas há por essas ruas, por essas terras, por esse mundo... Vemos as pessoas e não imaginamos o desepero que se apropria delas à noite, quando finalmente podem deixar cair a máscara da fortaleza ou da indiferença, e enfim sobe pela garganta aquele peso quente do medo.
ResponderEliminarTalvez por isso tanta dificuldade em reagir, porque não estamos habituados a ver isso nos outros, muito menos em público, muito menos no meio das mesas do café.
Castelo Branco? Beira Baixa?
ResponderEliminarAquele pedido de ajuda foi ouvido por várias pessoas e alguém se manifestou, dando alguma força à pobre mulher.
ResponderEliminarO pior é quando apenas nos pedem ajuda com o olhar e nem percebemos aquilo que as pessoas estão a passar. Só o percebemos tarde demais.
Espero não faltar de novo ao um pedido de ajuda, por mais silencioso que seja. Esforço-me pois por "ver" mais além nos olhos daqueles que me são próximos.
Não tenho estrutura emocional para aguentar mais pesos na consciência por não ter percebido que alguém precisou de mim em determinado momento. Já aconteceu e ainda hoje penso nisso, com mais frequência do que aquela que desejaria.
A mesma rua leva-nos a caminhos tão diferentes...
ResponderEliminarÉ verdade que as ruas nos levam a caminhos diferentes. E às vezes não temos a reacção que se esperaria. Nem a rapidez que se desejaria.
ResponderEliminarFoi, efectivamente, em Castelo Branco, Beira Baixa. Num sítio chamado Quinta do Dr. Beirão, salvo erro. Só não me lembreo do nome do café.