domingo, 15 de novembro de 2009

ARGEL IV - OS DIAS E AS MIRAGENS (2ª parte)

Continuação de:

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A Argel colonial está ainda por toda a parte. Nas ruas, nas tais arcadas onde não se poderá fotografar por razões de segurança, nos palacetes que coroam as colinas em volta do Mediterrâneo. E em sítios como o antigo hotel St. George, instalado em 1889 sobre os restos de um velho palácio hispano-mourisco. Apesar dos trabalhos de renovação com que há 20 anos o paramentaram com um pesado gosto de carpetes e cortinados de decoração densa, no St. George persiste uma aura de brilho que nem as obras conseguiram apagar. As marcas do tempo ficaram amarradas à parede. Haveremos de encontrar fotografias de um tranquilo almoço do Natal de 1920 no jardim do hotel; mais adiante, uma placa junto à entrada do quarto 1101 assinala, respeitosamente, que ali viveu, entre 1942 e 1943, o general Eisenhower. Muito pouco - aquilo que ficou nas fachadas das áreas menos tocadas pela fúria dos melhoramentos - se consegue identificar dessas velhas fotografias. Mesmo assim, justifica-se ainda o “ainda há paraísos”, dito pelo escritor Henry de Montherland depois de uma estadia no St. George .
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É essa ainda um pouco a imagem da cidade de hoje. A descrição feita pelo grande geógrafo al-Idrisi em meados do século XII diz apenas que “Argel se situa à beira-mar; os seus habitantes bebem água doce proveniente de fontes situadas perto do mar e de poços. É uma cidade muito povoada, de comércio florescente, bazares muito frequentados e manufacturas movimentadas”. Embora os livros nos contem toda a saga de Argel ao longo de milénios – cidade de marinheiros, piratas, aventureiros, comerciantes, diplomatas e de todos os desesperados do mar Mediterrâneo -, a sua face actual começou apenas a ser construída após 1830, quando os franceses tomam posse daquele apetecível troço do Norte de África. A pirataria e o corso foram a justificação para as operações militares que se iniciaram naquele ano, com o desembarque de 37000 homens em Sidi Ferruch, e que se iriam prolongar durante muito tempo, sem que a europeização e a cristianização do território alguma vez tivessem sido aceites pelos africanos.
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Ao longo de mais de um século será construída uma próspera e atraente metrópole colonial. Tirando partido do relevo a cidade vai estender-se muito para lá da velha casbah, ocupando os cerros em volta das zonas mais antigas. É, enfim, um pouco da Europa burguesa e capitalista que se vai instalar em pleno Magrebe. A organização urbana da cidade de El-Djezair (as ilhas) há-de, por isso, ser mudada. Os rochedos que deram nome ao aglomerado foram unidos, por força de um enorme aterro, ao continente, criando-se aquele que hoje é conhecido por “velho porto”. A casbah, que antes se estendia até à beira-mar, foi cortada por novas avenidas, ficando apenas, como memória desses tempos, uma pequena ilhota de casas com uma rua a que se deu o nome de “bastião 23”.
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Imagino que terá sido esse sonho de um tempo perdido que deixaram para trás os pieds-noirs (os retornados da Argélia) quando se viram forçados a abandonar esse canto do Norte de África. Nos dias seguintes à independência do país, em Julho de 1962, 5000 pieds-noirs morrerão ou desaparecerão, no meio de infindáveis vinganças. Perto de um milhão sairá em tropel nos meses seguintes.
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E se a memória desses acontecimentos trágicos ficou apenas na memória dos que os viveram, a história da luta da independência está escrita em cada rua e em cada esquina de Argel. Terão morrido entre 300000 e 600000 pessoas, muçulmanas ou cristãs, civis ou militares. Os números precisos jamais serão conhecidos, tal como nunca saberemos da amargura dos refugiados, dos orfãos, dos que foram presos ou deslocados. Fala-se em um milhão de mártires, o que justifica até hoje um culto obsessivo e ao qual não se escapa em Argel.
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A começar pelo monumento aos mártires em Riadh el Feth, que se avista de toda a cidade. O colosso em betão armado e gosto duvidoso alia a memória dos combatentes a um bizarro pragmatismo que voltaremos a encontrar mais vezes. Debaixo do memorial existe um centro comercial, meio-vazio por força da crise económica. E se o triplo obelisco não nos deixa esquecer os mártires, a verdade é que os voltamos a encontrar a cada esquina. Uma das grandes avenidas da cidade é o Boulevard des Martyrs; aos pés da casbah há a Place des Martyrs. Passeamos rodeados por mortos. Uma das grandes artérias comerciais recorda o combatente Didouche Mourad (comandante das forças independentistas na zona de Constantina, abatido em 1955). A outros heróis que não viram o dia da independência – Aït Homouda Amirouche, Youcef Zirout, Mustafa Ben Boulaïd, Mohamed Larbi Ben M’hidi - está também reservado lugar de destaque na toponímia da cidade.E esse aspecto tão ligado ao sacrifício humano parece quase pertencer à genética argelina. Desde há muito que os mártires, de hoje e de ontem, estão presentes na geografia do país. Ao longo de toda a costa multiplicam-se os santuários dos primeiros tempos da cristandade. Em todos eles há basílicas e memórias dos mártires desses dias, a história e a vida de homens e mulheres que morreram em nome de uma crença e de uma causa. Como ainda hoje sucede em Argel, onde os mártires e o sofrimento humano parecem surgir a cada esquina. A paz e uma longínqua tranquilidade são a segunda miragem de Argel.
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