quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

BOLONHA

Não há ainda muito tempo andava muito boa gente histericamente entusiasmada com o processo de Bolonha e com a adaptação dos cursos ao esquema de 3 + 2 de Bolonha. Nunca partilhei do entusiasmo - muitos colegas poderão testemunhá-lo - e tive a certeza que iríamos entrar num período de retrocesso. Posso agora dizer: pronto, já está!
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Tendo feito a licenciatura, e o mestrado, no século passado, posso ser algo suspeito nas minhas opiniões. Ao acabar ontem de corrigir os exames da disciplina de Introdução à arquitectura islâmica, do Mestrado em Arquitectura da Universidade de Évora, dissiparam-se todas as dúvidas. Aqui vão alguns tópicos, fruto de anos de trabalho, dentro e, sobretudo, fora das universidades:
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1. Os alunos saem do secundário com uma preparação cada vez mais sumária e insuficiente. Os filhos da educocracia reinante não sabem escrever e, pior ainda, lêem muito pouco. São frequentes, em estudantes de anos mais avançados, os erros de palmatória em matéria de ortografia e de sintaxe. Não consigo traduzir em palavras o desespero que sinto nessas alturas.
2. Os semestres passam-se a correr e sem a possibilidade de se desenvolver um trabalho minimamente estruturado e consequente. Muitos alunos optam, à partida, por se prepararem para o exame (a ideia de "exame" num mestrado nunca me encaixou completamente, confesso).
3. O sistema de passagem de disciplinas anuais a semestrais, consumado há já longos anos, não trouxe nenhuma vantagem sensível ao sistema de aprendizagem. Pior ainda, passou-se de um sistema em que se privilegiava a realização de trabalhos de investigação ao longo do ano lectivo para um esquema em que os alunos são, de forma mais ou menos evidente, dirigidos para as frequências e para os exames. Imperam a sebenta e um sistema de repetição de ideias onde a criatividade está ausente.
4. Mesmo nos mestrados se assiste a uma multiplicação de disciplinas, que deixam pouquíssimo espaço para o desenvolvimento de uma investigação digna desse nome. Desgraçadamente, já me apareceram trabalhos onde na bibliografia surgem referências à wikipedia. Umberto Eco deu uma entrevista sobre alguns dos malefícios da net. Duvido que tenham eco as suas preocupações.
5. As dissertações de mestrado ressentem-se de tudo isso. A Profª Iria Gonçalves exasperava-se com as nossas falhas nas vírgulas e, no meu caso, com um estilo por vezes pouco académico de escrita. Se ela soubesse como isto está agora...
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Conclusão: quando, no outro dia, contei aos meus alunos que no Mestrado em História Medieval da Universidade Nova tínhamos apenas quatro seminários (dois por ano!) fui olhado com a curiosidade de quem vê uma espécie em vias de extinção. Estarei a ficar velho?
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Bolonha não tem culpa de ter dado o nome a um aborto. Estas são as mais célebres torres medievais da cidade.

9 comentários:

  1. Tendo estado numa licenciatura de 5 anos há cerca de 12 anos atrás e estando agora num processo de licenciatura (concluída) mais mestrado (a concluir), acrescento duas coisas:

    - a primeira é a de que sempre se escreveu mal. Nem todos mas alguns. Sei de casos que chegaram a doutorados, dando erros de palmatória no Português. É claro que falamos de Ciências Naturais, neste meu caso, mas tal não é desculpa.

    - segundo, antigamente (no meu tempo, que tem quando muito 10, 15 anos), fazia-se a licenciatura, investigava-se/trabalhava-se na área durante uns bons anos, produzia-se investigação e só então se ia a mestrado. Ver um Mestre, na altura, era coisa de "avis rara"; respeitava-se a pessoa (mesmo que, academicamente, não valesse um chavelho ainda se tinha confiança no sistema: "se fez mestrado, alguém lhe terá achado algum valor").
    Hoje em dia, o mestrado faz-se logo a seguir à conclusão de uma licenciatura de 3 anos, feita à antiga portuguesa, pela praxe da imposição de cadeira inúteis, mal conduzidas, à custa da memorização e da "sebentização" - é a conclusão natural do processo de emagrecimento que sofreram as licenciaturas, com uma contracção anti-natura de 5 para 3 anos. Ora, quem destapa a cabeça, descobre-se-lhe os pés: mais caricato ainda, no caso da arqueologia, a tutela não reconhece as licenciaturas de Bolonha na área como capazes de habilitar os respectivos licenciados para a direcção de escavações ou quaisquer outros actos arqueológicos de relevo. Ora, se uma licenciatura não licencia.... serve para quê? Para atrair mais gente às Universidades, durante os tais dois anos que foram sonegados à licenciatura clássica. A vítima aqui é o estatuto do Mestrado, menorizado que fica com toda esta cosmética académica.

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  2. O mar de professores e de "drs" que continua leccionando adentro do sistema e se dá ares de o lastimar convictamente, porque se deixa ir na onda e não faz a diferença seguindo novos rumos? Trilhando outros caminhos, inovando...desconstruindo?

    É porventura mais fácil procurar culpas no alheio, nos "eles", achar que assim não se vai lá, e militar por causas que levaram a este estado de coisas.

    Inventem-se novos culpados!

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  3. Quando se comenta uma matéria é de toda a conveniência que se saiba o que se está a dizer. E de que se está a falar. Gosto do tom poético do "trilhando" e do "inovando". Mas mais ainda do "desconstruindo"...
    Explicando em poucas palavras: o sistema de ensino superior está formatado pelo esquema de Bolonha. São baias que não se podem desconstruir. Pode fazer-se o que fiz neste ano lectivo (o aumentar da exigência nas avaliações, até as colocar num patamar aceitável) e o que farei no próximo (dedicar-me à investigação, reduzindo ao mínimo os tempos lectivos).
    Há más notícias, caro anónimo: os burocratas e os educocratas preparam o assalto à Universidade.

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  4. Para o poder instituído é muito mais confortável ter um povo rápidamente licenciado, (a)mestrado - no meu tempo, estes mestres também eram raros - e com pouca capacidade critíca ou de argumentação. De outra forma, como se poderiam mostrar resultados positivos de combate ao analfabetismo, abandono e insucesso escolar e, simultaneamente, manobrar os meios de comunicação social e os fazedores de opinião para "nos" impingirem determinados factos como verdades absolutas e inquestionáveis...?
    Procurar novos sistemas de educação que permitam às pessoas pensar por elas próprias, é algo demasiado perigoso para ser posto em prática. E depois...!? Quem é que elegia a incompetência?


    BB

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  5. No que me diz respeito faço uma deliciosa BOLONHESA !

    Quanto ao nao saber escrever no ensino superior, nao me admira porque o problema é que muitas pessoas falam de forma incorrecta. E para ficarmos num registo italiano, lembraste duma senhora do MEN que andava na universidade e dizia MortaNdela e vamos-se?

    Ja agora ilumina-me a minha santa ignorância, porque é que se chama "Processo de Bolonha" ?

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  6. Ai Bolonha Bolonha... sofri na pele a experiência de ser a primeira fornada de experiências do processo em Portugal. A luta estudantil de nada valeu... era para aplicar e pronto! Resultado: dois anos à espera do diploma; porquê?: ninguém sabia o que escrever no dito papelinho... lic? Major? Tretas...
    Acabou com a investigação e o trabalho (pelo menos na minha matéria)

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  7. Caro Santiago, há que convir que os números são simpáticos...
    Depois, os números seguintes, nomeadamente de mestres desempregados, já são um menos simpáticos. Não estando naturalmente a falar de Mestres de Obra.
    Podemos inclusivamente criar um paralelo entre um conceito conhecido de que o grau de literacia de um país se mede da relação existente entre o número de astrólogos e o de astrónomos, com o número de Mestres de Obra e o número de Mestres (de Bolonha).

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  8. Fátima Figueira Garcia22 de fevereiro de 2010 às 15:44

    Estimado Santiago Macias, partilho a sua preocupação com o estado da educação no nosso país.
    Trata-se de uma política de facilitismo e do deixa andar. A grande preocupação são os números e não o aprender e saber fazer.
    Devemos ser uns autênticos "monstros" pelo facto de pedirmos e exigirmos aos nossos alunos, os seus do ensino universitário, os meus do 2.º ciclo, que saibam escrever correctamente e que aproveitem as oportunidades que lhes são
    facultadas. Chego à conclusão que ao que é oferecido não se dá grande valor! Que pena..., no século passado quantos alunos ficaram para trás pela simples razão de não haver condições económicas para que pudessem prosseguir estudos!
    Permita-me elogiá-lo por todo o seu percurso académico, bem como pelo trato e pela sua maneira simples de se apresentar que, contrasta em muito, com aqueles que se fazem sobressair apenas pelos cargos que exercem e não pelos seus valores morais e éticos. É regra geral em Portugal: valorizar o aspecto em detrimento do valor profissinal.
    Bem haja!

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  9. Parabéns pelo tema.
    Na minha perspectiva, a discussão pública, bem como nos meios especializados e competentes é muito pertinente.
    Depois de um percurso de licenciatura e mestrado na Universidade de Évora, procurei uma Universidade Espanhola para fazer doutoramento.
    À luz da minha experiência, não é Bolonha a única responsável pelos problemas diagnosticados. É já lugar comum dizer que a Universidade e a Escola reflectem a sociedade, mas é mesmo isso que me parece.
    Em Espanha encontrei nos professores uma disponibilidade, uma capacidade de caminhar junto aos alunos, que em muito raros momentos encontrei em Évora (só para não dizer nunca).

    Os meus professores espanhois centraram as suas apresentações/encontros com os alunos nas investigações que estavam a conduzir, nos artigos que acabavam de publicar, nos seus livros que algumas vezes nos ofereceram. E consideram essa uma forma "normal" de exercer o seu trabalho.
    Os meus professores de mestrado em Évora não fizeram o mesmo. O distanciamento é muito mais acentuado. A Hierarquia sente-se. O trabalho, a produtividade, a criatividade reflectem isso mesmo.
    De facto não há uma única e linear explicação para o estado do ensino universitário, e da escola em Portugal.
    Também por isso, este debate me parece muito útil.

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