terça-feira, 16 de março de 2010

KAPUSCINSKI

A polémica foi ressuscitada. O tema é cíclico. São as reportagens de Ryszard Kapuściński (1932-2007) narrativas factuais ou o célebre jornalista polaco adornou os seus trabalhos com matéria ficcionada? Veja-se o Público de ontem para se entender até onde vai a polémica e para se ver como o assunto é, na Polónia, quase uma matéria de Estado.
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Li, de Kapuściński, Ébano, Another day of life, Imperium e O imperador. A leitura de Ébano causou-me uma profunda e muito positiva impressão, embora uma das narrativas - a do buraco na estrada - me parecesse uma hipérbole da realidade e não um facto concreto. Tempos depois, ouvi o já falecido Cáceres Monteiro (1948-2006) pôr em causa o rigor da reportagem de Kapuściński sobre os últimos dias da Angola colonial (em Another day of life) dizendo simplesmente: "estive lá na mesma altura e não me lembro de ver muitas das coisas que ele diz que viu". Ouvi e registei. Não há nada como a dúvida metódica. Meses depois, perguntei a uma senhora que viveu em Luanda mais de 50 anos - desde que nasceu até 1975 - se conhecia a casa comercial Caminho ao Céu. Disse-me que não. Li-lhe uma passagem do livro: "Better luck (if that's the right word - I doubt it) attends Dom Francisco Amarel Reis, owner of the Caminho ao Céu (Road to Heaven) firm, concealed discreetely in a side street at the edge of the city centre. His speciality: crosses, caskets, foil flowers, funeral accessories". Aprecio imenso o humor negro e acharia um primor que alguém chamasse a uma casa de artigos funerários Caminho ao Céu. Infelizmente, a D. Maria Ornellas não confirmou a existência de tal sítio. Tal como disse não ter ideia de muitos outros pormenores que Kapuściński relatou.
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Kapuściński escreve bem? Não escreve bem, escreve de forma exemplar, não raro com um travo de melancolia. A sua escrita é menor por ele ficcionar factos? Não é. E as reportagens valem o mesmo? Claro que não valem. Nem por sombras.
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