E hoje é o dia de ser apresentado o livrinho Moura-Bissau.
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A edição é da Câmara Municipal de Moura e enquadra-se na visita do presidente da Câmara de Bissau ao concelho de Moura.
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Para além dos textos dos autarcas Armando Napoco e José Maria Pós-de-Mina (com versão em crioulo guineense de Odete Semedo), há um outro da minha autoria, e que se conjuga com as 32 imagens recolhidas. Foram 16 em cada cidade.
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As cidades são um palimpsesto. As cidades escrevem-se no tempo e são a escrita do tempo. As cidades escrevem-se devagar, ao longo de séculos ou de milénios. Os séculos mudam-nas, apagam e reescrevem as suas páginas. Que são refeitas vezes sem conta. De dia e de noite, porque as cidades são, como as consoantes do alifato, solares e lunares. Os dias de Bissau e as noites de Moura fazem parte dessa escrita, que nem sempre é linear. E que nunca é silenciosa.
Os sítios não são um acaso da sorte ou do destino. Os primeiros a chegar foram, ao mesmo tempo, geólogos e geógrafos e arquitectos e urbanistas. Não sabiam que o eram, mas esse é o detalhe menos importante da história. Preferiram pontos altos e a proximidade dos rios, para se protegerem das ameaças que conheciam e, sobretudo, das que não conheciam.
As ruas das cidades contam-nos a história das cidades, e a vida de quem lá viveu. Os séculos sobrepõem-se e anulam-se, como na face de um velho palimpsesto. Cada troço de rua, cada esquina, cada porta nos conta uma história ou parte de uma história. Dentro de uma cidade esconde-se sempre outra, com o que ficou de tempos idos a ler-se, por vezes com dificuldade, por entre o que foi cortado e acrescentado ao longo dos séculos. Onde havia uma pequena rua exige-se agora uma passagem larga para circularem automóveis, onde estava o regato fez-se uma via rápida, onde havia um pequeno cais há agora um aterro e o porto novo, para navios grandes, fez-se mais além, mais perto do mar. Essas alterações pressentem-se, mas nem sempre são claras, na luz baça e quente das manhãs de Bissau ou na escuridão recortada e fria das madrugadas de Moura.
As cidades coloniais são obra de militares, traçadas com a régua do poder. As plantas dessas cidade, vistas só em planta, são um enredo de ruas, direitas e com rigidez castrense. Aí fica Bissau velho, mas a nós há-de parecer-nos quase novo, com linhas direitas e precisas e sem muita gente à vista. Onde o braço do poder não chegou uma lassidão curvilínea apoderou-se do desenho das ruas. Surgem nomes de sons estranhos a ouvidos europeus: Missirá e Bandim, para oeste, Pefiné e Amedalai, para noroeste. Vivem nesses bairros pessoas que nos chamam à passagem. Uma vez e outra.
Bissau é cidade recente. Há uns séculos atrás ninguém passeava ao longo da corrente rápida do Geba porque a cidade ainda não existia. Os primeiros que chegaram, há muitos anos, encostaram-se ao litoral, e nele copiaram tudo o que sabiam da maneira de fazer fortificações, de desenhar ruas e de construir cidades. Por aí ficaram. Terra dentro e rio acima era o desconhecido. Aí ficava o coração das trevas.
Agora é Inverno em Bissau, aceitemos que 35º possam ser Inverno, e por isso o tempo é muito seco. O calor ainda vem longe e mais longe ainda está a chuva. Tenho dificuldade em imaginar como serão os dias de Verão, com a chuva que não pára, os mosquitos e um calor terrível, que só conhecemos dos compêndios de geografia.
O dia cansou-se e, mais a norte, vem a noite. Na noite cheia de luz do norte fica Moura. Em tempos, os viajantes reconheciam as cidades pelo perfil que se recortava no horizonte. A sombra escura do castelo que se desenhava ao longe era, muitas vezes, o único ponto de abrigo em território hostil. O desenho das sombras da noite de Moura não mudou em muitos séculos. À noite, mais que nunca, é preciso olhar a luz para ver as sombras. O dédalo do norte é mais ordenado que o do sul. Ou parece sê-lo. As casas do norte também têm paredes em terra. Mas a cor da terra é aí coberta pelo véu da cal. E, assim, as paredes brancas contrastam mais com a pele escura da noite.
Quando nos afastamos para as ruas laterais, onde há sempre menos gente, as cidades parecem-nos mais velhas e gastas. Mas não é assim em todas as cidades e em todos os sítios, com os prédios antigos com rugas traçadas pelo ar salgado ou pela secura do interior? Não é assim em todos os sítios que foram uma coisa e deixaram de o ser? Há casas onde viveu gente e agora não mora ninguém, o que faz delas apenas um conjunto de muros abandonados e a memória de glórias usadas e esquecidas. As cidades são isso, também.
No outro dia, quando a noite já não era noite e o dia ainda só espreitava, as ruas estavam desertas e sem um som. Nos largos apenas se ouvia o rumor dos papéis que o vento levantava e depois íam pousar no mesmo sítio, exactamente no mesmo sítio. Alguns toldos balouçavam devagar com a primeira aragem da manhã, enquanto as luzes se iam apagando devagar e ficando sem préstimo. Moura parecia ter ficado deserta e sido varrida da face da Terra. Onde estão “os que há pouco dançavam, cantavam e riam ao pé das fogueiras acesas?”
Chove a norte e a sul. A água do norte lança brilho sobre o deserto das calçadas. A sul chovem, na perpendicular, raios de um sol impiedoso. Não pára de chover. Num sítio porque é um Inverno de sol, no outro porque o Inverno é frio e de chuva.
Um dia, vão ficar para trás as sombras e o frio. Nesse dia quando voltarmos a encontrar o caminho do sul, iremos em direcção a um inverno de sol. Onde haverá acácias e bonitas mulheres, cujas pulseiras rivalizam com a curva do Geba, antes deste se perder no coração das trevas.
As cidades são um palimpsesto. As cidades escrevem-se no tempo e são a escrita do tempo. As cidades escrevem-se devagar, ao longo de séculos ou de milénios. Os séculos mudam-nas, apagam e reescrevem as suas páginas. Que são refeitas vezes sem conta. De dia e de noite, porque as cidades são, como as consoantes do alifato, solares e lunares. Os dias de Bissau e as noites de Moura fazem parte dessa escrita, que nem sempre é linear. E que nunca é silenciosa.
Os sítios não são um acaso da sorte ou do destino. Os primeiros a chegar foram, ao mesmo tempo, geólogos e geógrafos e arquitectos e urbanistas. Não sabiam que o eram, mas esse é o detalhe menos importante da história. Preferiram pontos altos e a proximidade dos rios, para se protegerem das ameaças que conheciam e, sobretudo, das que não conheciam.
As ruas das cidades contam-nos a história das cidades, e a vida de quem lá viveu. Os séculos sobrepõem-se e anulam-se, como na face de um velho palimpsesto. Cada troço de rua, cada esquina, cada porta nos conta uma história ou parte de uma história. Dentro de uma cidade esconde-se sempre outra, com o que ficou de tempos idos a ler-se, por vezes com dificuldade, por entre o que foi cortado e acrescentado ao longo dos séculos. Onde havia uma pequena rua exige-se agora uma passagem larga para circularem automóveis, onde estava o regato fez-se uma via rápida, onde havia um pequeno cais há agora um aterro e o porto novo, para navios grandes, fez-se mais além, mais perto do mar. Essas alterações pressentem-se, mas nem sempre são claras, na luz baça e quente das manhãs de Bissau ou na escuridão recortada e fria das madrugadas de Moura.
As cidades coloniais são obra de militares, traçadas com a régua do poder. As plantas dessas cidade, vistas só em planta, são um enredo de ruas, direitas e com rigidez castrense. Aí fica Bissau velho, mas a nós há-de parecer-nos quase novo, com linhas direitas e precisas e sem muita gente à vista. Onde o braço do poder não chegou uma lassidão curvilínea apoderou-se do desenho das ruas. Surgem nomes de sons estranhos a ouvidos europeus: Missirá e Bandim, para oeste, Pefiné e Amedalai, para noroeste. Vivem nesses bairros pessoas que nos chamam à passagem. Uma vez e outra.
Bissau é cidade recente. Há uns séculos atrás ninguém passeava ao longo da corrente rápida do Geba porque a cidade ainda não existia. Os primeiros que chegaram, há muitos anos, encostaram-se ao litoral, e nele copiaram tudo o que sabiam da maneira de fazer fortificações, de desenhar ruas e de construir cidades. Por aí ficaram. Terra dentro e rio acima era o desconhecido. Aí ficava o coração das trevas.
Agora é Inverno em Bissau, aceitemos que 35º possam ser Inverno, e por isso o tempo é muito seco. O calor ainda vem longe e mais longe ainda está a chuva. Tenho dificuldade em imaginar como serão os dias de Verão, com a chuva que não pára, os mosquitos e um calor terrível, que só conhecemos dos compêndios de geografia.
O dia cansou-se e, mais a norte, vem a noite. Na noite cheia de luz do norte fica Moura. Em tempos, os viajantes reconheciam as cidades pelo perfil que se recortava no horizonte. A sombra escura do castelo que se desenhava ao longe era, muitas vezes, o único ponto de abrigo em território hostil. O desenho das sombras da noite de Moura não mudou em muitos séculos. À noite, mais que nunca, é preciso olhar a luz para ver as sombras. O dédalo do norte é mais ordenado que o do sul. Ou parece sê-lo. As casas do norte também têm paredes em terra. Mas a cor da terra é aí coberta pelo véu da cal. E, assim, as paredes brancas contrastam mais com a pele escura da noite.
Quando nos afastamos para as ruas laterais, onde há sempre menos gente, as cidades parecem-nos mais velhas e gastas. Mas não é assim em todas as cidades e em todos os sítios, com os prédios antigos com rugas traçadas pelo ar salgado ou pela secura do interior? Não é assim em todos os sítios que foram uma coisa e deixaram de o ser? Há casas onde viveu gente e agora não mora ninguém, o que faz delas apenas um conjunto de muros abandonados e a memória de glórias usadas e esquecidas. As cidades são isso, também.
No outro dia, quando a noite já não era noite e o dia ainda só espreitava, as ruas estavam desertas e sem um som. Nos largos apenas se ouvia o rumor dos papéis que o vento levantava e depois íam pousar no mesmo sítio, exactamente no mesmo sítio. Alguns toldos balouçavam devagar com a primeira aragem da manhã, enquanto as luzes se iam apagando devagar e ficando sem préstimo. Moura parecia ter ficado deserta e sido varrida da face da Terra. Onde estão “os que há pouco dançavam, cantavam e riam ao pé das fogueiras acesas?”
Chove a norte e a sul. A água do norte lança brilho sobre o deserto das calçadas. A sul chovem, na perpendicular, raios de um sol impiedoso. Não pára de chover. Num sítio porque é um Inverno de sol, no outro porque o Inverno é frio e de chuva.
Um dia, vão ficar para trás as sombras e o frio. Nesse dia quando voltarmos a encontrar o caminho do sul, iremos em direcção a um inverno de sol. Onde haverá acácias e bonitas mulheres, cujas pulseiras rivalizam com a curva do Geba, antes deste se perder no coração das trevas.
Dear Santiago,
ResponderEliminarComo ja tive ocasiao de te dizer, acho este texto de uma grande beleza e nostalgia.
Nao sei porque o post (ainda) nao tem comentarios !?
Espero que o lançamento tenha corrido bem.
A Feira deve estar boa ; ))...sim porque comentarios publicados...é mentira !
ResponderEliminarResposta 1:
ResponderEliminarObrigado.
O lançamento correu muito bem. Haverá outro, em Bissau.
Resposta 2:
Uma feira do melhor (atenção ao balanço que farei amanhã).
Só hoje li este belíssimo texto. Lido de um só sorvo, embalado pelo primeiro parágrafo - "As cidades são um palimpsesto". Até parece fácil, não é?
ResponderEliminarOnde se pode adquirir o livro?
JCL
É muito bom ler você!
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