Tenho a impressão de que já escrevi esta cena, mas apetece-me escrevê-la uma vez mais. Num barco, a meio do lago, estão um homem e uma mulher. Muito ao alto, no céu negro, está a lua. A noite é silenciosa e amena, muito propícia a uma sonhadora acentura amorosa. O homem no barco será um raptor? A mulher a seu lado será a sua feliz e encantada vítima? Isso não sabemos; vemos apenas que eles se beijam. A montanha negra parece um gigante nas águas que brilham. Na margem está um palácio ou uma casa de campo com uma janela iluminada. Nem um ruído, nem um som. Tudo está coberto por um silêncio negro e meigo. As estrelas tremulam lá em cima no céu e tremulam também nas profundezas do céu que se reflecte no espelho de água. A água é a namorada do luar, chama-o para baixo, para perto de si, e agora água e luar beijam-se como namorada e namorado. O bonito luar afundou-se na água como um príncipe jovem e intrépido que mergulha numa torrente de perigos; espelha-se na água como também um coração ardente é espelhado por outro coração sedento de amor. É magnífico ver como o luar se parece com um amante, afogado em prazer, e como a água se parece com a feliz amada, que abraça e afaga o seu príncipe bem-amado. O homem e a mulher no barco estão completamente imóveis. Estão presos por um longo beijo. Os remos jazem esquecidos na água. Serão felizes, virão a ser felizes, aqueles dois que estão ali no barco, aqueles dois que se beijam, aqueles dois que o luar alumia, aqueles dois que se amam?
.Andava pelas estantes da livraria à procura de Vinte e quatro horas na vida de uma mulher, de Stefan Zweig. Não havia. Mas mesmo ao lado estava Robert Walser (1878-1956). Abri o livro (Histórias de amor) ao acaso e fui lendo passagens ao acaso. Ouvira falar do autor, mas nunca o tinha lido. Apaixonei-me pela escrita, que me tem acompanhado nos últimos dias. Este O barco data de 1915. O púdico anonimato dos protagonistas é tão anónimo quanto o de Les amants, célebre pintura de 1928 do belga Rená Magritte (1898-1967).
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Uma curiosidade: foi a partir de um texto de Robert Walser que João César Monteiro concebeu o seu polémico Branca de Neve.
Aquilo que me rolou
ResponderEliminare embrulhou
e fez correr pelo Mar
e fez gozar
os beijos de uma sereia
não foi a onda,
porque eu estava na praia
assentadinho e calado...
Foi apenas o eco
da voz da onda que vem
e bate, não sei lá bem
se nas funduras das grutas
se nas funduras de mim,
o eco, que me enrolou
e me rolou, embrulhou
(sossegadinho na areia)
e fez beijar, na maresia,
os lábios húmidos frescos
de uma sereia...
Sebastião da Gama