O pretexto desta referência é o recente prémio atribuído em França a Gonçalo M. Tavares. Deste autor li apenas um livro, Jerusalém, mas poucas, muito poucas obras me impressionaram tanto como esta. Não é só rigor formal da escrita, tanto quanto disso me consigo aperceber, mas também a densidade da narrativa. Custa a crer que aos 34 anos se veja o mundo com tanta clareza. O livro é difícil, mas são essas leituras as que causam prazer mais intenso. Eis o início:
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Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, Ernst atendeu.
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Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, Ernst atendeu.
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Não sei se a escolha do nome Spengler foi um acaso, mas creio que não. Jerusalém está á venda via internet. Em www.wook.pt, por 12,72 euros.
Tenho alguns livros do Gonçalo M. Tavares à espera de vez. Entretanto, tenho lido alguns poemas dispersos desse autor e, se por vezes é acusado de ter já uma vasta obra devido ao facto dos seus livros terem poucas páginas, a verdade é que a quantidade nunca foi sinónimo de qualidade.
ResponderEliminarLembro-me, muitas vezes, deste poema:
50º Poema do Livro – O HOMEM OU É TONTO OU É MULHER
Gostava de vos dizer uma coisa para terminar.
Às vezes tenho medo, muito medo.
Às vezes sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na possibilidade de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou um familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.
Todas as doenças pertencem a toda a gente.
Todos os sofrimentos pertencem a toda a gente.
Todas as mortes pertencem um pouco a toda a gente.
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo, brincar com a poesia, com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo de querer ser inteligente.
Deixo de querer parecer inteligente.
Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.
Não fazem sentido as lógicas, as filosofias, as discussões.
Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.
Só aquele pai que amo e está a envelhecer. Só aquela mãe que amo e está a envelhecer.
Só aquele amigo que morreu num estúpido acidente.
Só aquele amigo que se tornou amargo porque a mulher o deixou.
Só o amor e a falta de amor.
As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas, as mulheres e os homens que enganam.
Os amigos que deixam de o ser, alguns inimigos que morrem, e temos pena.
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.
Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo, mas que adianta?
Estamos sozinhos.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
Ou então deixam de nos telefonar, ou então deixamos de lhes querer telefonar.
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.
Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não adianta nada e nada impede.
Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.
Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar, tentamos ter ideias, tentamos distrair as pessoas, tentamos fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e isso é bom, e até pode ser bonito, mas não adianta nada, não resolve nada,
não adianta nada.
in Gonçalo M. Tavares, O homem ou é tonto ou é mulher.
Porto: Campo das Letras, 2002