"Tens de ir ao Bricomarché", disse-me a Isabel. Ouvi a frase com um estremecimento e um certo sentimento de fatalidade. Bricolagem e ferramentas não são o meu forte - au contraire... - e só ontem soube, via Mário Valério, o que é um "roquete". Sou uma alma gémea do imortal do tio Podger, que pendurava quadros com uma técnica em tudo idêntica à minha:
"Faz-me sempre lembrar o pobre do meu tio Podger.
Nunca se vê tamanha comoção numa casa como quando o meu tio Podger resolve pôr mãos à obra. Por exemplo, chegava do encaixilhador um quadro que ficava na sala de jantar à espera de ser pendurado; a tia Podger perguntava o que se ia fazer dele e o tio Podger respondia:
- Oh, deixa isso comigo. Não te preocupes, nem tu nem mais ninguém. Eu encarrego-me do trabalho.
E, aí, tirava o casaco e começava. Mandava a rapariga à rua buscar seis pence de pregos e depois mandava um dos rapazes atrás dela para lhe dizer que tamanho havia de trazer; e assim sucessivamente, até pôr toda a casa em polvorosa.
- Vá, vai buscar o meu martelo - gritava - e traz-me a régua, Tom; e preciso do escadote; e mais vale trazerem-me também uma cadeira da cozinha; e, Jim!, corre à casa do senhor Goggles e diz-lhe: "O pai manda cumprimentos e espera que esteja melhor da perna; e se faz favor de lhe emprestar o nível de bolha". E, oh!, Maria, não te vás embora porque preciso de alguém que me segure na lanterna; e quando a rapariga voltar, tem de sair outra vez para ir buscar um pedaço de cordão para quadros; e, Tom! - onde se meteu o Tom? - Tom, chega cá; quero que me passes o quadro.
E depois pegava no quadro, deixava-o cair, o quadro soltava-se do caixilho e, ao tentar salvar o vidro, o tio Podger cortava-se; e então punha-se aos saltos pela sala à procura do lenço. Não conseguia encontrar o lenço porque este estava no bolso do casaco que ele tinha tirado e, como não sabia onde tinha posto o casaco, toda a casa tinha que deixar de procurar as ferramentas para se pôr à procura do casaco, enquanto ele dançava pela sala e incomodava toda a gente.
- Mas será que ninguém nesta casa sabe onde está o meu casaco? Nunca na vida vi gente assim - palavra de honra. Seis! E nenhum consegue encontrar o casaco que eu tirei, ainda não há cinco minutos! Bolas, francamente...
Depois levantava-se e descobria que se tinha sentado em cima do casaco; e então exclamava:
- Oh! Já não precisam de procurar! Já o encontrei eu! Mais valia pedir ao gato que procurasse do que esperar que esta gentinha desse com alguma coisa.
E depois de se ter gasto meia hora a amarrar-lhe o dedo e de se ter encontrado um vidro novo e reunido as ferramentas, o escadote e a cadeira, de se ter trazido uma vela, ele fazia uma nova tentativa, com toda a família, incluindo a rapariga dos recados e a empregada, reunida em círculo em volta dele, pronta para ajudar. Duas pessoas tinham de segurar na cadeira, uma terceira ajudava-o a trepar lá para cima e a segurá-lo lá, uma quarta passava-lhe um prego e uma quinta estendia-lhe o martelo, e ele pegava no prego e deixava-o cair.
- Pronto! - dizia ele, numa voz magoada. - Agora desapareceu o prego.
E todos nós tínhamos de nos pôr de joelhos à procura do prego, enquanto ele ficava de pé, em cima da cadeira, a resmungar, perguntando se era para ficar ali a noite inteira.
Finalmente, quando se encontrava o prego, ele já tinha perdido o martelo.
- Onde está o martelo? Que é que eu fiz do martelo? Valha-me Deus! Vocês são sete, todos para aí embasbacados, e nenhum viu onde eu meti o martelo!
Encontrávamos-lhe o martelo mas entretanto já ele tinha perdido de vista a marca que tinha feito na parede, onde o prego havia de entrar. E todos nós tínhamos de nos empoleirar na cadeira, ao lado dele, a ver se a conseguíamos achar. E cada um de nós a descobria num lugar diferente e então ele chamava-nos parvos, todos um bando de parvos, e mandava-nos descer da cadeira. E pegava na régua, e voltava a medir, e descobria que tinha de saber quanto era metade de setenta e nove centímetros e setenta e nove milímetros a partir do canto, tentava calcular de cabeça e ficava furibundo.
Todos nós tentávamos calcular de cabeça, e todos nós chegávamos a diferentes resultados, e fazíamos troça uns dos outros. No meio da confusão geral, esquecia-se o número inicial e assim o tio Podger tinha de voltar a tirar as medidas.
Desta vez usava um pedaço de fio e, na altura crítica em que o velho louco se vergava sobre a cadeira, num ângulo de 45°, e tentava chegar a um ponto situado dez centímetros para além daquilo que lhe era possível alcançar, o fio escapava-se-lhe da mão e ele estatelava-se em cima do piano, produzindo um efeito musical do mais fino recorte, de tal maneira o corpo e a cabeça batiam em todas as teclas ao mesmo tempo.
A tia Maria dizia que não permitia que as crianças ali ficassem a ouvir uma linguagem daquelas.
Finalmente, o tio Podger conseguia localizar de novo a marca e colocava a ponta do prego sobre ela, com a mão esquerda, segurando no martelo com a mão direita. E, com a primeira martelada, esmagava o polegar e, uivando, deixava cair o martelo em cima dos pés de alguém.
A tia Maria observava mansamente que, da próxima vez que o tio Podger quisesse pôr um prego na parede, esperava que ele a prevenisse a tempo para que ela pudesse ir passar uma semana com a mãe, enquanto o trabalho estava a ser feito.
- Oh! Vocês mulheres! De tudo fazem uma confusão! - replicava o tio Podger, endireitando-se. - Que queres, os trabalhinhos deste tipo divertem-me!
E depois fazia mais uma tentativa e, à segunda pancada, o prego entrava direitinho pela parede adentro e metade do martelo ia atrás dele, e o tio Podger era precipitado de encontro à parede, com força quase suficiente para esborrachar o nariz.
Depois tínhamos de voltar a procurar a régua e o fio e novo buraco era feito; e, lá pela meia-noite, o quadro estava pendurado, todo torto e mal seguro, com a parede à volta que parecia varrida a tiro e toda a gente morta de cansaço e furiosa. Toda a gente excepto o tio Podger.
- Pronto! Já está! - dizia ele, descendo pesadamente da cadeira para cima dos calos da empregada e inspeccionando com um orgulho evidente a bagunça que tinha feito. - Quando penso que há pessoas capazes de chamar um operário para fazer um trabalho destes! " (...)
."Faz-me sempre lembrar o pobre do meu tio Podger.
Nunca se vê tamanha comoção numa casa como quando o meu tio Podger resolve pôr mãos à obra. Por exemplo, chegava do encaixilhador um quadro que ficava na sala de jantar à espera de ser pendurado; a tia Podger perguntava o que se ia fazer dele e o tio Podger respondia:
- Oh, deixa isso comigo. Não te preocupes, nem tu nem mais ninguém. Eu encarrego-me do trabalho.
E, aí, tirava o casaco e começava. Mandava a rapariga à rua buscar seis pence de pregos e depois mandava um dos rapazes atrás dela para lhe dizer que tamanho havia de trazer; e assim sucessivamente, até pôr toda a casa em polvorosa.
- Vá, vai buscar o meu martelo - gritava - e traz-me a régua, Tom; e preciso do escadote; e mais vale trazerem-me também uma cadeira da cozinha; e, Jim!, corre à casa do senhor Goggles e diz-lhe: "O pai manda cumprimentos e espera que esteja melhor da perna; e se faz favor de lhe emprestar o nível de bolha". E, oh!, Maria, não te vás embora porque preciso de alguém que me segure na lanterna; e quando a rapariga voltar, tem de sair outra vez para ir buscar um pedaço de cordão para quadros; e, Tom! - onde se meteu o Tom? - Tom, chega cá; quero que me passes o quadro.
E depois pegava no quadro, deixava-o cair, o quadro soltava-se do caixilho e, ao tentar salvar o vidro, o tio Podger cortava-se; e então punha-se aos saltos pela sala à procura do lenço. Não conseguia encontrar o lenço porque este estava no bolso do casaco que ele tinha tirado e, como não sabia onde tinha posto o casaco, toda a casa tinha que deixar de procurar as ferramentas para se pôr à procura do casaco, enquanto ele dançava pela sala e incomodava toda a gente.
- Mas será que ninguém nesta casa sabe onde está o meu casaco? Nunca na vida vi gente assim - palavra de honra. Seis! E nenhum consegue encontrar o casaco que eu tirei, ainda não há cinco minutos! Bolas, francamente...
Depois levantava-se e descobria que se tinha sentado em cima do casaco; e então exclamava:
- Oh! Já não precisam de procurar! Já o encontrei eu! Mais valia pedir ao gato que procurasse do que esperar que esta gentinha desse com alguma coisa.
E depois de se ter gasto meia hora a amarrar-lhe o dedo e de se ter encontrado um vidro novo e reunido as ferramentas, o escadote e a cadeira, de se ter trazido uma vela, ele fazia uma nova tentativa, com toda a família, incluindo a rapariga dos recados e a empregada, reunida em círculo em volta dele, pronta para ajudar. Duas pessoas tinham de segurar na cadeira, uma terceira ajudava-o a trepar lá para cima e a segurá-lo lá, uma quarta passava-lhe um prego e uma quinta estendia-lhe o martelo, e ele pegava no prego e deixava-o cair.
- Pronto! - dizia ele, numa voz magoada. - Agora desapareceu o prego.
E todos nós tínhamos de nos pôr de joelhos à procura do prego, enquanto ele ficava de pé, em cima da cadeira, a resmungar, perguntando se era para ficar ali a noite inteira.
Finalmente, quando se encontrava o prego, ele já tinha perdido o martelo.
- Onde está o martelo? Que é que eu fiz do martelo? Valha-me Deus! Vocês são sete, todos para aí embasbacados, e nenhum viu onde eu meti o martelo!
Encontrávamos-lhe o martelo mas entretanto já ele tinha perdido de vista a marca que tinha feito na parede, onde o prego havia de entrar. E todos nós tínhamos de nos empoleirar na cadeira, ao lado dele, a ver se a conseguíamos achar. E cada um de nós a descobria num lugar diferente e então ele chamava-nos parvos, todos um bando de parvos, e mandava-nos descer da cadeira. E pegava na régua, e voltava a medir, e descobria que tinha de saber quanto era metade de setenta e nove centímetros e setenta e nove milímetros a partir do canto, tentava calcular de cabeça e ficava furibundo.
Todos nós tentávamos calcular de cabeça, e todos nós chegávamos a diferentes resultados, e fazíamos troça uns dos outros. No meio da confusão geral, esquecia-se o número inicial e assim o tio Podger tinha de voltar a tirar as medidas.
Desta vez usava um pedaço de fio e, na altura crítica em que o velho louco se vergava sobre a cadeira, num ângulo de 45°, e tentava chegar a um ponto situado dez centímetros para além daquilo que lhe era possível alcançar, o fio escapava-se-lhe da mão e ele estatelava-se em cima do piano, produzindo um efeito musical do mais fino recorte, de tal maneira o corpo e a cabeça batiam em todas as teclas ao mesmo tempo.
A tia Maria dizia que não permitia que as crianças ali ficassem a ouvir uma linguagem daquelas.
Finalmente, o tio Podger conseguia localizar de novo a marca e colocava a ponta do prego sobre ela, com a mão esquerda, segurando no martelo com a mão direita. E, com a primeira martelada, esmagava o polegar e, uivando, deixava cair o martelo em cima dos pés de alguém.
A tia Maria observava mansamente que, da próxima vez que o tio Podger quisesse pôr um prego na parede, esperava que ele a prevenisse a tempo para que ela pudesse ir passar uma semana com a mãe, enquanto o trabalho estava a ser feito.
- Oh! Vocês mulheres! De tudo fazem uma confusão! - replicava o tio Podger, endireitando-se. - Que queres, os trabalhinhos deste tipo divertem-me!
E depois fazia mais uma tentativa e, à segunda pancada, o prego entrava direitinho pela parede adentro e metade do martelo ia atrás dele, e o tio Podger era precipitado de encontro à parede, com força quase suficiente para esborrachar o nariz.
Depois tínhamos de voltar a procurar a régua e o fio e novo buraco era feito; e, lá pela meia-noite, o quadro estava pendurado, todo torto e mal seguro, com a parede à volta que parecia varrida a tiro e toda a gente morta de cansaço e furiosa. Toda a gente excepto o tio Podger.
- Pronto! Já está! - dizia ele, descendo pesadamente da cadeira para cima dos calos da empregada e inspeccionando com um orgulho evidente a bagunça que tinha feito. - Quando penso que há pessoas capazes de chamar um operário para fazer um trabalho destes! " (...)
.
Nos dias maus socorro-me, como pílula de boa disposição, do livro "Três homens num bote", escrito em 1889 por Jerome Klapka Jerome (1859-1927). Há lá histórias imortais, a do tio Podger, a do queijo que acaba enterrado na praia, a do pianista alemão e a do homem que só conseguia remar de pé.
.
Não há imagens do tio Podger. Mas há de Frank Spencer, essa outra minha alma gémea. A série, Some Mothers Do 'Ave 'Em, passou na RTP por volta de 1975. Michael Crawford (n. 1942) tinha nas reparações caseiras um dos seus temas chave. Só disponível no youtube, onde vale a pena espeitar, aqui, a aventura da árvore de Natal.
.
Já agora, fui ao Bricomarché. Obviamente, enganei-me no tipo e tamanho das acendalhas.
Nos dias maus socorro-me, como pílula de boa disposição, do livro "Três homens num bote", escrito em 1889 por Jerome Klapka Jerome (1859-1927). Há lá histórias imortais, a do tio Podger, a do queijo que acaba enterrado na praia, a do pianista alemão e a do homem que só conseguia remar de pé.
.
Não há imagens do tio Podger. Mas há de Frank Spencer, essa outra minha alma gémea. A série, Some Mothers Do 'Ave 'Em, passou na RTP por volta de 1975. Michael Crawford (n. 1942) tinha nas reparações caseiras um dos seus temas chave. Só disponível no youtube, onde vale a pena espeitar, aqui, a aventura da árvore de Natal.
.
Já agora, fui ao Bricomarché. Obviamente, enganei-me no tipo e tamanho das acendalhas.
Roquete ou Briquete, caro Santiago? Há alguma diferença... Roquete não sei o que é e que se venda no Bricomarché, mas Briquete são uns cilindros de pó de madeira prensada que eu utilizo para acender ao inicio a lareira, continuando depois com a lenha de azinho ou sobro.
ResponderEliminarE acendalhas é o que eu utilizo para acender os briquetes. Parece complicado, mas uma vez que não tenho esteva...
É roquete. Tanto quanto percebi trata-se de uma espécie de chave de parafusos (espero não estar a dizer alguma heresia).
ResponderEliminarMil desculpas, fui induzido em erro. Como falas em acendalhas... e eu tinha acabado de comprar briquetes na Izzy (Bricomarché em versão portuguesas, do Grupo Mestre Maco).
ResponderEliminarRealmente roquete é uma ferramenta muito utilizada pelos mecânicos... mas que não dá para acender o lume nem tampouco um cigarrito, por mais pequenito que seja!
Bem, de qualquer das formas gostei da história do Tio Podger! BDR
: )))), LOL & everything...
ResponderEliminarSo te esqueces-te de falar do nosso papa...o numero do balde de tinta de oleo na casa de banho de Queluz e as pegadas na alcatifa azul petroleo marcaram-me para a eternidade.
Como compreendo a querida Isabel ! Coragem minha amiga ; )
Alias, quando tive que escolher marido, primeiro pu-lo à prova : ))
"Os três homens num bote" li-o durante os meus percursos de comboio da linha de Sintra...penso que os outros passageiros pensavam que eu estava "passada" ou que tinha fumado algum cigarrinho p'ra rir : )))
Ja agora, ... porque nao convidas os teus amigos para tomar um copo e ao mesmo tempo fazes um Happening Bricolagem ? Com o tempo cinzento que corre...passarao um momento desopilante : )))
Estou certa 100% !
Caro amigo Santiago
ResponderEliminarAcho indecente que um tal Jerome K. Jerome tenha inventado um "tio Podger" sem ter conhecido o meu tio José Maria. Esse Podger é uma imitação barata.
Um abraço,
Manuel Branco