Quando a porta se abriu e Albertina surgiu no patamar quase não a reconheci. Doze anos tinham passado e ela avisara-me que o seu estado de saúde não era o mesmo. E o aspecto também não. “Estás quase na mesma”, menti piedosamente, enquanto entrava. Na casa de Albertina, como na casa de todos os velhos, acumulavam-se móveis fora de moda, paredes por pintar e um ar sombrio e triste, que o fim de tarde só aumentava. Não havia gatos, contudo.
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No corredor de entrada, sobre o móvel, estava uma fotografia. Um senhor de ar tranquilo, cabeça de casal, uma senhora bonita, mãe de profissão e com aquele ar de segurança que todas as mães profissionais têm, dois rapazitos de lacinho, um rindo descaradamente para o fotógrafo, e uma menina de totós, bonita e um pouco coquette. “És tu?”, perguntei. “Sou”, respondeu Albertina, agora subitamente mais idosa, arrastando-se pelo corredor fora, “tinha uns 7 anos”. 1950, pensei, numa matemática fácil.
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Falara com Albertina uma semana antes, depois de um silêncio de doze anos. Será possível que não falemos com uma amiga durante doze anos? Passei a visitá-la, mas estaquei naquela fotografia de família. Todos nós temos fotografias dessas em casa, do tempo em que se faziam fotografias no estúdio, todos quietos e aprumados, penteados e vestidos para uma grande ocasião. Agora já ninguém vai ao fotógrafo, porque esse ritual desapareceu e porque a chungaria das impressoras de jacto de tinta e o digital tornaram os fotógrafos de estúdio tão obsoletos como um daguerreótipo.
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Os pais de Albertina partiram há muito e não imaginavam, naquele dia de há 60 anos, que um dia, 60 anos depois, Albertina passaria com dificuldade, e com os ossos em mau estado, em frente daquela alegria de tempos idos. O retrato da família de Albertina, assim congelado no tempo, é o retrato de todos nós. Daquilo que fomos e daquilo que mais tarde seremos. O retrato da menina de totós, de sorriso coquette e rodeada de irmãos mais novos, um rindo descaradamente para o fotógrafo, passará um dia para sobrinhos e para sobrinhos-netos até que estes, esquecidos de quem é aquele quinteto de ar feliz, o metam na caixa do esquecimento.
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Os pais de Albertina partiram há muito e não imaginavam, naquele dia de há 60 anos, que um dia, 60 anos depois, Albertina passaria com dificuldade, e com os ossos em mau estado, em frente daquela alegria de tempos idos. O retrato da família de Albertina, assim congelado no tempo, é o retrato de todos nós. Daquilo que fomos e daquilo que mais tarde seremos. O retrato da menina de totós, de sorriso coquette e rodeada de irmãos mais novos, um rindo descaradamente para o fotógrafo, passará um dia para sobrinhos e para sobrinhos-netos até que estes, esquecidos de quem é aquele quinteto de ar feliz, o metam na caixa do esquecimento.
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Saí para a tarde fria de Marvila. Não pude deixar de reparar, ao entrar horas mais tarde em casa, na fotografia de um terceto onde estou, mais novo e mais velho, e que um dia, talvez daqui a 30 ou 40 anos, irá, sem pena e levando consigo a felicidade de tempos idos, cair numa caixa do esquecimento.
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.Crónica publicada em A Planície de dia 1.2.2011. A fotografia, de Gerard Castello-Lopes (n. 1925), foi feita na Lisboa dos anos 50.
Do blog "Um certo oriente" permito-me transcrever o seguinte:«Como eu lamento que sem mim os dias passem, as flores desabrochem e a Primavera venha; Invernos e estios e as Primaveras hão-de passar, e eu nada mais sou senão terra e pó.» (‘Abdul-Rahman Jami).
ResponderEliminarDa´ para pensar e fazer uma pausa na chamada "espuma dos dias.
Este texto comoveu-me...
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