Fui aluno de José Manuel Tengarrinha. Não participei na homenagem que ontem lhe foi prestada. Nem participarei em qualquer homenagem que venha a ser preparada. Bem sei que, do alto do meu anonimato, o impacto do meu gesto é igual a zero. Mas há questões de coerência pessoal que estão acima de todas as outras. O estilo brandinho e português suave não vai, mesmo, comigo. Não digo bem só por já serem anciãos ou por já não estarem neste mundo.
Aqui vão as razões:
O ano letivo de 1984/85 foi complicadíssimo na Faculdade de Letras de Lisboa. Três ou quatro professores da velha guarda preparavam a limpeza dos resquícios do PREC e deram início a um processo de dispensa de assistentes marcado pelo revanchismo mais puro. Um dos alvos a abater era José Manuel Tengarrinha, professor convidado, figura prestigiada pelo seu passado antifascista e símbolo de uma certa esquerda. A dispensa de Tengarrinha foi dada como certa. Quais os seus "pontos fracos"? Marxismo a mais, uma tese de doutoramento que nunca mais aparecia e notas demasiado altas. Uma das cabeças pensadoras da casa exigia mesmo a aplicação da curva de Gauss às avaliações. Ou seja, era necessário que houvesse poucos chumbos, muitas notas num escalão médio e poucas notas altas.
Estava a fita armada. A Direção da Associação de Letras, da qual eu fazia parte, mobilizou-se para denunciar a canalhice e obrigar o Científico a recuar. Eu era aluno de José Tengarrinha na cadeira de "História de Portugal (sécs. XVIII-XX)". Havia motivos para o dispensar? Nem por sombras. As aulas eram razoavelmente aborrecidas e demasiado centradas na questão do capital comercial e muito pouco nas questões concretas do Portugal Contemporâneo. Tengarrinha era um professor cordial e acessível e que dava apoio aos alunos. Se o critério de dispensa era o da competência, Tengarrinha estava muito longe da frente da bicha.
Foram dias intensos de combate. Exigimos ser recebidos por toda a gente. E fomos. Do diretivo ao pedagógico passando pelo científico. Convocámos assembleias. Lemos comunicados nas aulas. Escrevemos para os jornais. Houve entrevistas para o Semanário, para o Expresso, para a Rádio Comercial, eu sei lá. Um belo dia, fomos esperar os professores à porta do Científico. Éramos uns 100. Estava na linha da frente e dirigi-me, com o desplante próprio dos 21 anos, ao catedrático de Medieval, Borges Nunes, a quem perguntei: "Como é, senhor professor? Queremos saber o que se passa com o dr. Tengarrinha.". Borges Nunes fez um sorrisinho e respondeu-me "Esse assunto não foi tratado hoje, mas haverá decisão rapidamente". Habituado ao estilo jesuítico de Borges Nunes pressenti um recuo. Não me enganei. O Científico recuou e Tengarrinha teve o contrato renovado.
O pior estava para vir. Ao ver as pautas, em julho, caiu-me o coração aos pés. Tengarrinha cedera, baixando as notas de forma radical em relação a anos anteriores. Fazia pela vidinha... Pouco depois, um furioso Santiago Macias entrava na sala de professores, e disse tudo o que lhe ía na alma ao prof. Tengarrinha. Os detalhes ficam para a minha memória pessoal e para as duas queridas amigas a quem convoquei na altura, porque queria testemunhas para aquele meu raid. Eventualmente intempestivo e radical, mas que veio do fundo do coração. E porque, ainda que consciente da inutilidade e do nulo impacto do meu gesto, ficaria para sempre a lamentar não ter dito o que lhe disse durante aqueles momentos.
Não voltei a cruzar-me com o prof. Tengarrinha. Desejo, sinceramente, que conte muitos anos mais, e de boa saúde. Daqui lhe envio uma curva de Gauss, em recordação desses dias, que tão importantes foram para ele, para mim e que tanto ajudaram a formar politicamente toda uma geração de joves estudantes.
Aqui vão as razões:
O ano letivo de 1984/85 foi complicadíssimo na Faculdade de Letras de Lisboa. Três ou quatro professores da velha guarda preparavam a limpeza dos resquícios do PREC e deram início a um processo de dispensa de assistentes marcado pelo revanchismo mais puro. Um dos alvos a abater era José Manuel Tengarrinha, professor convidado, figura prestigiada pelo seu passado antifascista e símbolo de uma certa esquerda. A dispensa de Tengarrinha foi dada como certa. Quais os seus "pontos fracos"? Marxismo a mais, uma tese de doutoramento que nunca mais aparecia e notas demasiado altas. Uma das cabeças pensadoras da casa exigia mesmo a aplicação da curva de Gauss às avaliações. Ou seja, era necessário que houvesse poucos chumbos, muitas notas num escalão médio e poucas notas altas.
Estava a fita armada. A Direção da Associação de Letras, da qual eu fazia parte, mobilizou-se para denunciar a canalhice e obrigar o Científico a recuar. Eu era aluno de José Tengarrinha na cadeira de "História de Portugal (sécs. XVIII-XX)". Havia motivos para o dispensar? Nem por sombras. As aulas eram razoavelmente aborrecidas e demasiado centradas na questão do capital comercial e muito pouco nas questões concretas do Portugal Contemporâneo. Tengarrinha era um professor cordial e acessível e que dava apoio aos alunos. Se o critério de dispensa era o da competência, Tengarrinha estava muito longe da frente da bicha.
Foram dias intensos de combate. Exigimos ser recebidos por toda a gente. E fomos. Do diretivo ao pedagógico passando pelo científico. Convocámos assembleias. Lemos comunicados nas aulas. Escrevemos para os jornais. Houve entrevistas para o Semanário, para o Expresso, para a Rádio Comercial, eu sei lá. Um belo dia, fomos esperar os professores à porta do Científico. Éramos uns 100. Estava na linha da frente e dirigi-me, com o desplante próprio dos 21 anos, ao catedrático de Medieval, Borges Nunes, a quem perguntei: "Como é, senhor professor? Queremos saber o que se passa com o dr. Tengarrinha.". Borges Nunes fez um sorrisinho e respondeu-me "Esse assunto não foi tratado hoje, mas haverá decisão rapidamente". Habituado ao estilo jesuítico de Borges Nunes pressenti um recuo. Não me enganei. O Científico recuou e Tengarrinha teve o contrato renovado.
O pior estava para vir. Ao ver as pautas, em julho, caiu-me o coração aos pés. Tengarrinha cedera, baixando as notas de forma radical em relação a anos anteriores. Fazia pela vidinha... Pouco depois, um furioso Santiago Macias entrava na sala de professores, e disse tudo o que lhe ía na alma ao prof. Tengarrinha. Os detalhes ficam para a minha memória pessoal e para as duas queridas amigas a quem convoquei na altura, porque queria testemunhas para aquele meu raid. Eventualmente intempestivo e radical, mas que veio do fundo do coração. E porque, ainda que consciente da inutilidade e do nulo impacto do meu gesto, ficaria para sempre a lamentar não ter dito o que lhe disse durante aqueles momentos.
Não voltei a cruzar-me com o prof. Tengarrinha. Desejo, sinceramente, que conte muitos anos mais, e de boa saúde. Daqui lhe envio uma curva de Gauss, em recordação desses dias, que tão importantes foram para ele, para mim e que tanto ajudaram a formar politicamente toda uma geração de joves estudantes.
Curva de Gauss = SIADAP!
ResponderEliminarMudam-se os tempos, ficam as idiotices...
ASS. V7
rmribeiro
ResponderEliminarEstou como tu,nunca participaria numa comemoração a quem tão vergonhosamente se vergou.Ainda por cima não esqueças da reunião com os alunos,onde ele já não sabia onde se meter e aumentou-lhes a nota(excepto aqui a da parva,que nem lá pos os pés).
A pessoa em causa (jose manuel tengarrinha)não devia ser reduzido a estas posições pontuais e esquecer-se o homem no seu todo. estas ejaculações precoces eram desnecessárias quando se comemora em homenagem pelos seus 80 anos. foi como é claro professor de centenas de alunos os quais não se identificam longe disso com estas posições que no mínimo são descontextualizadas do presente. era interessante recordar a sua biografia para além da de docente e no mínimo estas posições sãode todo deselegantes. "disse-me que dava uma nota e depois de pressionado baixou-ma! e depois? haja peso e medida!
ResponderEliminarfrancisco caetano
Caro Francisco Caetano
ResponderEliminarO homem no seu todo são também os acontecimentos que relatei. Respeito o passado antifascista de Tengarrinha. Por isso me custou mais engolir aquele recuo. Esclareço também (embora esta "declaração de interesses" não me parecesse necessária) que não fui prejudicado na classificação. A nota que JMT me atribuiu foi correta. Muitos outros colegas não poderão dizer o mesmo. Mais valor, menos valor na pauta, não é isso que está em causa, mas sim a atitude. O dossiê Hernâni Resende, que se seguiu a este foi outro momento triste da história da FLL. Mais uma vez houve muita gente que se acobardou. Veja na imprensa da época quem foram os solidários e os acagaçados.
Respeito a sua posição, mas mantenho a minha.
SM
Claro que é de saudar o passado resistente de JMT. No entanto, tantos anos depois, é de toda a justiça recordar que se JMT continuou na Faculdade só o deveu à luta dos alunos e à capacidade de mobilização da Associação de Estudantes: os únicos que deram a cara por ele (os professores de então, salvo honrosas excepções, agacharam-se, sob as mais variadas justificações). Que se saiba, JMT nunca lhes agradeceu, não soube ter uma palavra de apreço por essa capacidade de indignação dos universitários de então e que não largaram a imprensa na denúncia da situação. Postura diferente teve Hernâni Resende, um nome tão injustamente esquecido e cujo saber e integridade marcou, seguramente, muitas centenas de alunos.
ResponderEliminarReponha-se a verdade:
ResponderEliminarJMT agradeceu aos alunos, num discurso bastante emotivo, que me foi relatado (não assisti porque isso teve lugar na primeira aula da manhã, às 9h., e eu era da turma das 11).
Pois meu caro Santiago, pelo menos terás tido uma só nota. Eu tive uma na pauta e uma mais baixa no livro de termos, para ver se passava. Protestei para o Pedagógico, o homem ficou furibundo (que lhe estavam a tramar a vida), mas lá corrigiu a coisa no livro de termos. Enfim, carácter fraco.
ResponderEliminarPena que não se tenha sabido lutar por Hernâni Resende, José Baginha, Fernando António Baptista Pereira. Professores bem mais marcantes que Tengarrinha com o seu A. Sobul. Mas estes não eram dirigentes políticos nem deputados, o que também diz algo sobre alguma motivação estudantil da altura.