A
cara do senhor que me atendeu no restaurante era vagamente familiar. Mas não
mais que isso. Alguém referiu, ao meu lado, que era um dos donos do “Borges”.
Aí sim, ligou-se a máquina do tempo, o cabelo do senhor ficou mais escuro, as
rugas desapareceram e ficou à minha frente, por artes mágicas, o homem que
servia imperiais ao balcão do Borges. A cervejaria nada tinha de especial, a
não ser a afabilidade dos empregados, que aturavam sorridentes a impertinência
da juventude de Letras, e o facto de ficar mesmo à saída da Alameda da
Universidade. O Borges tinha um estranho íman, que nos puxava lá para dentro,
só para espreitar, só para ver se havia alguém. Fatalmente, havia alguém. Assim
foi, entre 1981 e 1986.
A sala de entrada era o grande ponto de
encontro dos alunos da faculdade. Do lado esquerdo ficava o balcão. À direita,
havia filas de mesas, encostadas umas às outras, para rentabilizar o espaço.
Isso diminuía a intimidade das conversas, mas ninguém ía para o Borges namorar.
As séries de imperiais e de tremoços desfilavam por entre discussões mais ou
menos absurdas sobre o futuro da investigação, sobre a falta de saídas
profissionais, sobre a entrada de Portugal na CEE. Discutiam-se os livros
comprados na livraria da esquina. Passei lá muitos finais de tarde, na
companhia de colegas que, por vezes, voltei a encontrar muitos anos depois.
Alguns tornaram-se pessoas muito importantes, que ganharam tiques e pose e que
falam com um tom de voz que cheira a Poder. Nunca lhes recordo esses dias, não
vão eles ficar embaraçados.
O
João abominava o Borges, que classificava como “espelunca”. Não era tal, mas o
João às vezes tinha coisas assim e só lá fomos almoçar uma vez. Um dia de
grande azar, porque encontrou uma mosca no meio do arroz de polvo. Foi a única
mosca que vi no Borges, e logo morta, e fiquei convencido que os empregados
sabiam da opinião do João sobre o Borges e lhe semearam a mosca no prato…
Não
sei se o sítio ainda existe. Se existir não entrarei. Com um pouco de sorte não
terá sido transformado num “fast-food”. Com mais sorte ainda, haverá lá dentro
um sortido de estudantes despenteados, discutindo coisas absurdas. Não é sítio
para homens grisalhos. Cabelos brancos só detrás do balcão, onde pontificarão,
se o sítio existir e não for um “fast-food”, empregados antigos, dispostos a
aturar o barulho da juventude. E, talvez, com um “stock” de moscas mortas para
alvejar clientes impertinentes.
Texto publicado em "A Planície" (1.4.2012)
Ao tentar copiar uma fotografia - a única que encontrei na net- com a fachada atual do Borges a imagem "desconfigurou", creio que é assim que se diz. A imagem ficou com sobreposições e fantasmas. É sempre assim quando se tenta recuperar o passado, não é?
Belas e claras memórias. Deixa-me acrescentar, à livraria da esquina, a da Bertrand, o sr. Vasconcelos (não sei se é do teu tempo) a retirar da gaveta os livros que não podia pôr na montra... O "Borges" ainda existe, refinado, claro, mais para profs da universidade e miúdos do Colégio Moderno, comensais. Mas o sr. Paulo continua o mesmo e reconhece-me como sôtor, 30 anos depois, o que não deixa de me sensibilizar. Mudam-se os tempos e os lugares, mas nem tudo são tristezas.
ResponderEliminarLindas lembranças. Mais lindo ainda: "A imagem ficou com sobreposições e fantasmas. É sempre assim quando se tenta recuperar o passado, não é?"
ResponderEliminarVerdade.