Entrei para o combóio e comecei a folhear o livro. Quase de seguida, comecei a rir, primeiro discretamente, depois às gargalhadas. Foi assim durante 25 minutos, até à estação de Queluz, ante o olhar desconfiado de outros passageiros. Já uma vez transcrevi aqui uma das passagens de Três homens num bote, com a qual me identifico profundamente (v. aqui).
Aqui fica o episódio do queijo:
Jorge propôs ainda para o pequeno almoço ovos e toucinho, que são fáceis decozinhar carne fria, chá, pão, manteiga e compota. “Para o almoço - disse ele - poderíamoslevar bolachas, carne fria, pão, manteiga, compota - mas nada de queijo”. O queijo, tal como o petróleo, invade tudo. Toma conta de um barco inteiro. Espalha-se na despensa e dá um gosto a queijo a tudo o que lá está. Chega-se a não saber se se está a comer torta de maçã, salsicha de Francfort ou morangos com leite. Tudo nos parece queijo. O queijo tem um cheiro forte de mais. Lembrei-me logo dum amigo meu que tinha comprado dois queijos em Liverpool. Eram uns belos queijos, moles e redondos, e que espalhavam em volta um aroma da força de duzentos cavalos-vapor, a três quilómetros de distância, e deitava um homem por terra a duzentos metros. Eu estava então em Liverpool, e o meu amigo perguntou-me se não me importava de levar os queijos comigo para Londres, porque ele não voltaria senão daí a um ou dois dias, e parecia-lhe que aqueles queijos não se podiam guardar muito mais tempo.
“- Mas com muito prazer, caro amigo, com muito prazer” - respondi-lhe eu. Fui buscar os queijos e meti-me com eles num trem. Esse trem era um carro velho, puxado por uma pileca sonâmbula, esquelética e vagarosa, que o seu proprietário, no calor da conversa, chegou mesmo a qualificar de cavalo. Pôs os queijos no tejadilho, e partimos numa velocidade que teria feito honra ao mais rápido de todos os cilindros a vapor até hoje construídos e, de princípio, tudo se apresentou tão alegre como um dobrar a finados. Mas quando voltámos a esquina, o vento trouxe uma baforada do cheiro dos queijos, em cheio, sobre o nosso ginete. O odorífero bafo acordou-o bruscamente e, com um relinchar assustado, tomou balanço e largou à velocidade de cinco quilómetros à hora. O vento continuava a soprar na mesma direcção e antes de chegar ao fim da rua ele tinha já alcançado uma velocidade de sete à hora, deixando bem longe, atrás de si, os doentes e as senhoras velhas e gordas. Na chegada à estação, foram necessários dois carregadores, além do cocheiro, para aguentar o corcel, duvido mesmo que o tivessem conseguido, se um dos homens não mostrasse a presença de espírito bastante para lhe atar um lenço às ventas e queimar papel-de-arménia. Tirei o meu bilhete e avancei orgulhoso no cais, com os meus queijos, enquantoas pessoas se afastavam respeitosamente de um lado e de outro. O comboio ia cheio. Tive de subir para um compartimento onde já estavam sete pessoas. Um senhor velho e rabugento protestou mas eu entrei e, pondo os meus queijos na rede, instalei-me com um amável sorriso, dizendo que estava um dia muito quente. Passados alguns minutos, o senhor de idade começou a mostrar-se agitado.
“- Está aqui tão abafado” - disse ele.
“- Até falta o ar” - respondeu o seu vizinho.
Então puseram-se ambos a fungar. À terceira foram tomados de uma sufocação, levantaram-se sem dizer uma palavra. Depois levantou-se uma senhora gorda e disse que era vergonhoso faltar assim ao respeito a uma honesta mãe de família. Carregada com uma mala e oito embrulhos, saiu também. Os quatros viajantes restantes aguentaram-se alguns momentos mas, por fim, um senhor de ar grave, que estava sentado a um canto e que, pelo seu fato e aspecto geral, parecia pertencer a alguma organização de cerimónias fúnebres, disse que aquilo lhe fazia lembrar uma criancinha morta. Ao ouvirem isto, os outros três viajantes precipitaram-se todos ao mesmo tempo para a porta, esbarrando uns nos outros. Sorri ao senhor fúnebre e disse-lhe que, felizmente, o compartimento ficaria todo só para nós. Sorriu-se por sua vez, com ar amável, e respondeu que muita gente tomava a sério coisas sem importância. Mas no decorrer da viagem começou a mostrar-se extraordinariamente deprimido por isso, quando chegámos a Crewe, convidei-o a vir comigo ao bufete beber um copo de cerveja. Aceitou. Dirigimo-nos ao bufete, onde gritámos e vociferámos e batemos com os nossos chapéus de chuva durante um quarto de hora. Por fim apareceu uma rapariga que nos perguntou se desejávamos alguma coisa.
“- O que toma o senhor?!” -perguntei ao meu amigo.
“- Tomo quatro doses de conhaque, se faz favor, menina” - respondeu ele.
Depois de beber à farta, foi-se embora tranquilamente e subiu para outro compartimento, o que eu achei bastante reles. A partir de Crewe, apesar de o comboio ir apinhado, fiquei absolutamente só. Nas paragens das diferentes estações, os passageiros, quando viam o meu compartimento vazio, precipitavam-se para o tomarem de assalto. E eu ouvia-os gritar: “Aqui está o que nos convém, Maria anda cá, temos aqui muitos lugares! - Ora ainda bem, Tom,vamos lá!” E corriam todos, carregados com pesadas malas, empurravam-se em frente da porta para serem os primeiros a entrar. Um deles abria a porta, subia ao estribo ... e, titubeando, caía para trás nos braços daquele que o seguia, vinham todos e, depois de cheirarem, largavam a fugir e iam amontoar-se noutro compartimento ou pagavam o excesso e iam para a primeira classe.
Na estação de Euston desci e levei os queijos a casa do meu amigo. Ao entrar na sala, a mulher dele respirou fundo. Depois perguntou-me: “- O que foi? Não me esconda a verdade, mesmo que tenha acontecido alguma desgraça”. E eu respondi: “- São dois queijos. Tom comprou-os em Liverpool e pediu-me que os trouxesse para aqui”. E acrescentei que certamente ela havia de compreender que eu não tinha qualquer responsabilidade naquela história. Respondeu-me que estava certa disso, mas que tinha duas palavras a dizer ao Tom, quando ele voltasse. O meu amigo ficou em Liverpool mais tempo do que contava, e três dias mais tarde, como ele não tivesse ainda voltado, a mulher veio visitar-me. Perguntou-me: “- O que lhe disse o Tom a respeito dos queijos?” Respondi-lhe que recomendara que os conservassem em sítio fresco e que ninguém deveria tocar-lhes. Ela continuou: “- Há realmente muitas probabilidades de que ninguém lhes toque”. Ele tinha-os cheirado? Era, no meu entender, muito provável, e acrescentei que Tom parecia fazer muito gosto nos queijinhos.- Pensa que ele ficaria muito contrariado - perguntou ela - se eu desse vinte xelins a um homem para que mos fosse enterrar longe daqui? Respondi-lhe que, se o fizesse, não tornaria a ver o seu marido rir. Ocorreu-lhe uma ideia. Propôs-me “- Importava-se de os guardar até o meu marido vir? Eu mandava-os vir para sua casa”. “- Minha senhora - respondi eu -, eu próprio gosto muito do cheiro do queijo, e a viagem que fiz há dias com eles ficar-me-á sempre gravada no espírito como um feliz remate de umas férias agradáveis. Mas, neste mundo, temos que pensar também nos outros. A senhora sob cujo tecto tenho a honra de habitar é viúva e, muito possivelmente, é também órfã. Tem uma maneira forte, direi mesmo eloquente, de se opor a que, como ela diz, “façam pouco dela”. A presença dos queijos do seu marido nesta casa, receio bem, dar-lhe-ia a impressão de que estavam a fazer pouco dela e eu não quero que possam dizer que abusei da viúva e da órfã”. “- Bem! - prosseguiu a mulher do meu amigo, levantando-se. - Só me resta pegar nas crianças e ir com elas para um hotel, enquanto os queijos não são comidos. Desisto de viver mais tempo na mesma casa com eles”. Cumpriu a sua palavra e deixou a casa entregue à mulher a dias. Esta, quando lheperguntaram como podia resistir àquele cheiro, respondeu “Qual cheiro?” e quando lhe puseram o nariz em cima dos queijos e lhe disseram que cheirasse, confessou que sentia um leve aroma a melão. Donde concluíram que ela não corria perigo por viver naquela atmosfera, e deixaram-na lá ficar. A conta do hotel atingiu cinquenta libras esterlinas e o meu amigo, depois defazer os cálculos, verificou que os queijos lhe tinham saído a oito xelins e seis pence por meio quilo. Acrescentou que adorava realmente queijo, mas que as suas posses não lhe permitiam tal estravagância. Deitou os queijos à água no canal, mas foi obrigado a pescá-los, porque os donos das embarcações queixaram-se. Disseram que o cheiro quase os fazia desfalecer. Depois disso, o meu amigo levou-os uma noite escura para o cemitério da paróquia, e deixou-os lá ficar. Mas o coveiro descobriu-os e fez uma zaragata terrível. Alegou que era umapartida que lhe tinham feito para o privarem do seu ganha-pão, acordando os mortos. Por fim, o meu amigo acabou por se ver livre deles levando-os para uma terra à beira-mar e enterrando-os na praia, o que deu ao local uma fama imensa. Os banhistas diziam que nunca tinham reparado na leveza e pureza daquele ar e, durante muitos anos, encheu-se a terra de pessoas fracas e doentes dos pulmões.
"Esta, quando lheperguntaram como podia resistir àquele cheiro, respondeu “Qual cheiro?” e quando lhe puseram o nariz em cima dos queijos e lhe disseram que cheirasse, confessou que sentia um leve aroma a melão."
ResponderEliminarIa tendo uma apoplexia! ahahah
Muito divertido!Adorei o título.
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