Apenas a água principiou a ferver, com a revolução do peixe que se
aproximava da superfície, rompeu a mais tremenda gritaria e algazarra,
de que tenho memória, e que ainda redobrou ao aparecimento dos primeiros
atuns. Começou então a toirada.
Sucedeu que o primeiro atum
arpoado se escapou, e caído à água com tal velocidade parecia voar,
jorrando sangue que o acompanhava de um rastro de púrpura. A assuada ao
marujo infeliz foi medonha, e vi jeitos de o atirarem também à água. Mas
é que os primeiros atuns que apareciam, tendo ainda campo avonde para
nadar, fugiam das barcas, enquanto os marujos, abrindo os braços, e com
grandes pancadas no costado das lanchas, os incitavam às sortes, como se
fossem bois.
Isso, porém, durou pouco. Entre borbolhões de
espuma assomou logo uma densa camada de peixe, e tão apertada pelo
costado das barcas, que os marujos quase lhe davam às cegas, levantando
uma cabeça a cada arpoada.
Viu-se então que o atum era de bom
calibre e muito. Ao meu lado, um perito amador, mas de reconhecida
autoridade, ia-o contando, e quando chegou aos quinhentos verificou-se
que não fazia falta no copo, onde continuava a afluir em camadas
igualmente densas.
O sangue e a água, misturados, soltavam-se aos
cachões, envolvendo os peixes em línguas de púrpura cristalina, e ao
centro da rede faziam remoinho, abrindo um poço fundo e largo, por cujas
paredes transparentes giravam, desvairados, os grandes bichos
cintilantes.
Dissera-me o meu hóspede que o Joaquim Negrão me
preparava uma surpresa, e sem o ter esquecido eu pensava, com
cepticismo, no que poderia haver mais surpreendente do que aquele
espectáculo de colossal carnificina, com tal cenário, nunca igualado,
nem aproximado pela fantasia do mais asiático dos imperadores romanos.
O contador já ultrapassara o milhar e ainda o peixe acudia em
abundância, sendo algum de extraordinário tamanho. Eram os "velhos
manhosos", observava um marujo, que só aparecem no fim. Com efeito, as
camadas que vinham à superfície tornavam-se pouco a pouco menos densas,
avolumando ainda mais as proporções dos "velhos manhosos" que se
multiplicavam.
O Negrão, aproximando-se do meu grupo, para falar com o mestre da companha, bradou-me:
- "Agora vou-lhe mostrar um quadro da mitologia." - "Vamos lá ver",
repliquei, se bem que pouco disposto ao entusiasmo, já embotado pela
prodigiosa cena a que assistia. Depois de falar com o mandador, o Negrão
gritou para a ré da barca: - "Bem, se não há mais nenhum, que venha cá o
Serafim..." - "O Serafim, o Serafim!" pôs-se a clamar quase em coro a
marujama, e um rapaz atarracado, embezerrado, e arruivado, como que lhe
veio nos braços, pela amurada fora, até onde o Negrão estava. E ouvi
este que lhe dizia: - "Não quero desculpas; é para já..."
Então o
rapaz, depois de olhar entre envergonhado e receoso para o meu grupo,
principiou a despir aquela quantidade de trapalhadas em que os
pescadores se envolvem, mesmo de Verão, quando vão para o mar. E
apareceu admiravelmente bem proporcionado e forte, com um tronco de
coiraça grega, abaulado no peito e estio no ventre, os quadris
estreitos, mas as coxas volumosas e de formidável musculatura. Tirante
os pulsos, o pescoço, e os pés, que andavam tostados do sol, todo ele
era de uma brancura marmórea. De pé, na borda da lancha, erguendo os
braços e juntando as mãos, tomou um leve balanço e jogou-se à água,
sumindo-se entre os peixes.
Mas em poucos segundos ele surgia,
quase na extremidade oposta do copo, montando um enorme atum, que, para
se desembaraçar da estranha carga, entrou a correr vertiginosamente,
saltando sobre o outro peixe que lhe impedia a passagem, ou mergulhando
subitamente, para reaparecer alguns metros mais longe, sempre com o
tritão às costas, agarrado com a mão esquerda a uma das alhetas,
agitando a outra mão no ar, e dando gritos de triunfo. O rapaz estava
transfigurado; resplandecia de audácia e mocidade, entre as grandes
salsadas de água rubra que lhe lambiam o corpo, e luzia, ao sol, como um
vivo mármore cor-de-rosa.
Animados pelo exemplo, outros rapazes
se atiravam à água, para cavalgar os peixes, mas nenhum tinha a
segurança heróica, nem a graça helénica do Serafim.
A pesca
fechou acima de mil e trezentas cabeças. Mais de "treze centos", como
dizia a gente da companha. Fora, na verdade, uma copejada maravilhosa.
Tomámos o bote para regressar a terra. O sol ardia já como fogo, e em
volta da armação formara-se um círculo imenso ensanguentado, onde as
lanchas, carregadas de peixe, bordejando, abriam silhagens de carmim,
que se lhes reflectia nos bojos das velas pandas.
Quando entrámos
em águas limpas, senti a necessidade de me purificar, depois daquela
monstruosa hecatombe, e atirei-me, nu, ao mar. Após vários mergulhos
fundíssimos, até onde o peso morto do corpo me podia levar, passei
debaixo dos braços um cabo que lançaram do bote e deixei-me rebocar para
terra, já meio adormecido...
A ideia de colocar um excerto de Stromboli (Roberto Rossellini, 1950) não é de agora. Não era exatamente esta a cena que tinha em mente, mas um facto ocorrido há uns tempos levou-me a escolhê-la.
Perguntei a alunos de uma turma de licenciatura em História (12) e de uma turma de mestrado (12) "quem foi Manuel Teixeira Gomes?". De entre duas dúzias de alunos de grau superior, apenas 2 (dois) sabiam quem tinha sido. Os restantes nunca tinham ouvido falar de um homem que foi Presidente da República (1923-1925) e que assinou uma obra literária de reconhecido mérito. A culpa não é deles, bem sei...
O excerto que acima se reproduz faz parte do texto Uma copejada de atum, publicado na obra Agosto Azul.
Passaram a conhecer. Talvez precisassem de voltar ao tempo de colégio e fazer uma leitura obrigatória com resenha e apresentação. Além de uma pesquisa em História sobre os principais aaontecimentos e personagens importantes e seus reflexos em nossa vida cujos resultados devem ser apresentados a todos. Só de birra.
ResponderEliminarMania que tem as pessoas em não compreender que História é vida.Nossa vida de agora espelhada na vida de ontem.Hororosa mania de não ler!