segunda-feira, 12 de agosto de 2013

BOLAMA: A COSTA É UMA MURALHA DE MANGUE

A costa é uma linha contínua. A costa é uma muralha de mangue. Três horas depois de uma navegação entre o mangue, o céu pardacento e o mar pardacento, o barco chega a Bolama. Do mar ainda não vemos a cidade. Vemos apenas o molhe, à nossa frente. 

O barco apita três vezes, como se de um filme se tratasse. A cidade é uma clareira na costa e no mangue. Está à nossa frente, atrás do mangue e dos poilões. Pressente-se, colina acima, mas não mais que isso. Quem olha a cidade, lá do alto, são os jagudis. Um voo preguiçoso, ao ritmo do barco e do calor. 

Do mar não vemos a cidade, nem vemos as ruínas. No calor da tarde, Bolama começa a tomar forma. Plantas antigas dão-lhe uma ordem, que agora desaparece, por entre os prédios em mau estado. As ruas coloniais são, agora, terreno lavrado pela chuva e pela incúria. O pavimento original desapareceu há muito. Passa um jipe, levantando nuvens de pó. Há silêncio e há pó, um pó vermelho, silencioso e perene, que tudo cobre. 

À direita do porto ergue-se um obelisco. Ai caduti di Bolama, homenageou Mussolini. O monumento existe desde o ano IX da Era Fascista. Mussolini acreditava governar para a eternidade. Falhou em toda a parte, menos em Bolama. Até hoje, a memória dos quatro aviadores que ali morreram permanece gravada na pedra. 

As cidades existem, isso é bem sabido, enquanto símbolos do poder. A arqueologia mostra-nos como as cidades e os seus edifícios mudam quando o poder desaparece ou se torna fraco. Quanto mais forte é o poder, mais visíveis são os sinais da sua decadência. Anfiteatros romanos que são ocupados por igrejas, teatros que se transformam em espaços de habitação, ruas que são cortadas ou privatizadas, de tudo um pouco as escavações nos contam, dando voz aos que tomaram a vez de quem mandava. Tal não aconteceu em Bolama. Quando os brancos saíram, e Bolama era deles e para eles, a cidade saiu de si própria. 

Uma cidade não costuma morrer de uma só vez. Uma cidade definha. Agora um muro cai, logo a seguir tomba um troço de telhado, depois outro. A morte de uma cidade é uma arqueologia às avessas, uma escavação feita da base para o topo. 

No princípio do fim tudo parece imutável. Os prédios são quase os mesmos, estão quase intactos. Estão feridos de morte, mas tal não é visível. Alguns anos depois começam a ser visíveis os sinais da doença. O processo é cada vez mais rápido, cada vez mais irreversível. Algumas décadas mais tarde, a história da cidade só é feita por velhos bilhetes-postais. As telhas misturam-se com a densidade das ervas e dos arbustos. Os canos de água, podres e inchados pela ferrugem, saem dos muros, sem préstimo. Primeiro é a água que se insinua nos muros, começando a atacar o ferro, que cresce e ganha volume. Depois, a argamassa salta e o processo acelera-se. Mais tarde, notam-se já com clareza as frestas e o interior dos muros. É o começo da ruína final. Bolama desmaia ma i ka murri, diz-se por lá, mas a realidade desafia a tradição. 

Bolama foi a capital da Guiné Portuguesa. Hoje, entre escombros, ferrugem e o esquecimento, é um cenário fantástico, entre Greene e Conrad. A cidade, lá nos trópicos, é fácil de encontrar (11º 20’ 0’’ N, 16º 5’ 0’’ W). Mas não é fácil de lá sair. Um dia mais tarde explicarei porquê.



Mais um passo no livrinho que há-de sair sobre Bolama. Mais uma tentativa de encontrar o caminho para esta extraordinária cidade tropical. O texto foi publicado em "A Planície" de 8 de agosto.

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