Encontro, nos consultórios médicos lisboetas, uma
inexprimível angústia do quotidiano. Muitos deles ocupam grandes andares
outrora de habitação e que foram, mais tarde, tomados de assalto por estas
funções. Somei, ao longo de anos, alguma experiência em tais domínios. Não
muita experiência, mas a suficiente para ganhar algumas certezas sobre esse
mundo à parte.
Há sempre uma campainha irritante e duas senhoras, sempre
duas, entrincheiradas detrás de um balcão feito para suecos. As senhoras pedem
números, debitam honorários numa voz que é sempre igual, em todos os
consultórios. As horas marcadas nunca são cumpridas, “o soutôr está um
pouquinho atrasado”, “vai ter de esperar um pouco”. Perdemos o direito ao apelido
“o senhor Santiago vem em jejum?”, “o senhor Santiago tem ADSE ou seguro de saúde?”.
A informalidade cresce dentro consultório e sou tratado por tu “tens problemas
de asma?”, “tomas medicamentos?”. Não conheço o médico de lado algum e
apetece-me responder na mesma moeda. A terrorífica visão dos bisturis e das
seringas inibe-me, contudo. Os exames também têm pormenores curiosos, como
aquela cena dos raios X, NÃO ME-XE, NÃO RES-PI-RA, JÁ ESTÁ. Lembro-me sempre da
anedota do radiologista na cama e dá-me vontade de rir, mas consigo
controlar-me.
Precipito-me, sempre com sofreguidão arqueológica, para as
revistas da sala de espera. Os títulos não desapontam “Naty Abascal nos abre
las puertas de su impresionante casa de Sevilla”, “Isabel Pantoja habla de su
relación con Diego Gomez”. Acho-me mais giro, não muito mas pelo menos um
pouco, que o tal Diego Gomez. Mas a conta bancária dele é, decerto, muito mais
interessante que a minha. Há também revistas da Ordem dos Médicos e publicações
obscuras, de tempos de outrora. A “Visão” e a “Sábado”, mais a “Pública”, em
edições cpazes de irem para um alfarrabista.
Nas paredes há reproduções infalíveis de obras de arte. O
“menino da lágrima” foi removido das escolhas e deu lugar a “posters” comprados
no IKEA ou na FNAC. Em alguns consultórios a ousadia deu para comprar “Arte
Original”. Com maiúsculas. A ousadia dá, quase sempre, direito a desgraças
maiores. Numa visita recente a um desses antros deparei com um estranho
aranhiço em metal na parede. Já não basta nós irmos em stress e enervados,
ainda por cima somos torturados com a representação de algo que lembra um
desastre de automóvel...
Punch-line: na última incursão a esse mundo estranho, a
senhora entradota e gorducha da receção olhou-me, piscou muito os olhinhos, um
tique sem dúvida, e ditou “olhe querido, tem de voltar mais tarde, que o soutôr
ainda está a fazer o relatório”. Voltei. Claro. Quem é que resiste a ordens
destas?
Hieronymus Bosch (c. 1450-1516) pintou este A extração da pedra da loucura ou a A cura da loucura em final do final do século XV. Ao olhar a tela, fico sempre com a "ligeira" sensação que Bosch não tinha grande apreço ou confiança no médico, que aparece aqui visto como charlatão. Os resultados desta trepanação parecem mais que duvidosos... O quadro está hoje no Museu do Prado, em Madrid.
Crónica publicada hoje, em "A Planície".
Revi-me quase completamente neste texto! Lembrou-me alguns dos consultórios que tenho "visitado" desde miúdo.
ResponderEliminarA "cena" de se esquecerem do(s) apelido(s) do doente é mesmo assim! Mas essa prática de nos chamarem pelo nome próprio, em alguns casos até pode ser vantajoso (eu que o diga).
Isto fez-me lembrar daquela rubrica que, durante anos, um jornalista (salvo erro, o Duda Guenes) publicava no jornal "A Bola": o "Meu Brasil brasileiro". Um dia, o Duda Guenes resolveu escrever sobre nomes esquisitos registados no Brasil. Um dos mais estranhos que fixei era este: Ápio Agápio Gerúndio Gorgundófilo. Num caso assim, seria interessante observar a cara da senhora a chamar pelo doente...:)
Cumprimentos