Não
sei se ainda estará entre nós. Deverá andar pelos 95 anos, perto disso. A sua
figura era, no mínimo, invulgar, mesmo tendo em conta que a palavra invulgar
não queria dizer grande coisa, na Faculdade de Letras daqueles anos. Os seus
cabelos brancos, a sua longa écharpe, a maneira jovial de se sentar em cima das
mesas e de fumar cigarro após cigarro davam-lhe uma imagem única. Era a aluna
mais velha de História da Arte. O estilo descontraído herdara-o das Belas-Artes,
onde andara no final dos anos 40. Embora insistisse num tratamento informal
nunca conseguimos deixar de lhe chamar “Dona Francelina”.
Lembro-me
de si com regularidade. Lembro-me, em especial, do dia em que pegou num braço e
me arrastou corredor fora, na Faculdade de Letras, até um canto mais tranquilo.
Aí chegados, fitou-me de ar sério e disparou “olha lá filho, tu és bom aluno e
podes fazer qualquer coisa de jeito; mas andas aí numa vida e numa agitação…
estou preocupada contigo; olha o que aconteceu ao Zé Dias…”. Lembro-me do
torpor que senti, enquanto as sinapses tentavam funcionar. Só passados largos
segundos percebi que a senhora se referia ao militante comunista José Dias
Coelho, assassinado pela PIDE em 1961, aos 38 anos. Tinham sido colegas, claro
está. Tentei tranquilizá-la e prometi-lhe, mentindo conscientemente, que iria
mudar.
O seu
ar reprovador nunca me abandonou, nos últimos dois anos de faculdade, os mais
intensos politicamente e aqueles em que percebi que aquele ambiente de
minuetos, vénias e traições não era para mim. Lembro-me de a ver abanar a
cabeça com desalento, sentada na secretária à entrada do Instituto de História
da Arte, enquanto eu distribuia comunicados ou afixava a pauta de classificação
dada aos professores, uma originalidade que me custou caro… Também não ficará
surpreendida se souber que dos média-16 do curso de História 81/85 só o Carlos
Almeida, eu e mais um ou dois estamos fora daquele sistema.
Neste
ano que passou, a sua recordação tem sido recorrente. Acho que, no fundo, a
senhora sabia que eu não encaixava ali e que faria outras coisas na vida.
Confesso-lhe que, tanto na juventude como depois, a ideia de ser Presidente da
Câmara de Moura nunca me ocorreu. Também não se surpreenderá, Dona Francelina,
se lhe disser que desempenho o cargo com todo o afinco e tentando fazer o
melhor possível. Ou como diz, sibilino, um amigo meu “tudo isto foi uma
evolução natural”.
Despeço-me,
mesmo sem saber de si, com amizade e com saudades daqueles dias,
Santiago
Macias (20.10.2014)
Crónica publicada em A Planície, no passado dia 1 de novembro.
Boa história! Venham mais!
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