quarta-feira, 4 de março de 2015

ÀS VOLTAS NA MOURARIA

Aconteceu-me há já algum tempo, em Lisboa. Entre uma reunião e outra achei que era tempo de revisitar a Mouraria. A Mouraria é um dos mais extraordinários sítios de Lisboa. Em tempos prolongava-se mais um pouco para norte. Recorde-se que a Rua do Forno de Tijolo se chamava, no século XIX, Calçada do Almocavar (ou seja, do calçada do cemitério muçulmano). Na Mouraria viveram, até ao final do século XV, os muçulmanos de Lisboa, confinados a um ghetto. É um bairro popular e de povos. Nos últimos tempos, foi "tomado de assalto" por indianos, paquistaneses, senegaleses, guineenses, etc.. Bairro à margem da cidade, antes e depois.

Perdi-me por ali, como nos tempos de juventude. Passei em frente à casa onde morou Fernando Maurício, grande fadista do povo. Virei depois em direção à Rua dos Cavaleiros. Na esquina, um choque entre tradição e modernidade. Chega uma viatura do INEM, sirene a apitar e luzes por todo o lado. Trava a fundo e pergunta o condutor "onde é o Largo das Olarias?" (estranha pergunta para quem vai de urgência e nem um raio de uma planta da cidade tem). Salta uma matrona de negro, volumosa e de chinela no pé "ó querido, tens de virar ali à direita". O carro arranca prego a fundo e toma o caminho errado. Estão quatro pintas, um deles de rabo de cavalo lustroso, outro em tronco nu e coberto de tatuagens caprichosas, encostados a um chaveco; grita um, de forma a ouvir-se no Rossio, "não é por aí pá; éxtúpidocumóc******". O carro trava, recua e corrige a rota. Rio baixinho, não resisto a cenas destas, e sigo para a Rua do Benformoso. Há casas à venda. Da EPUL. A 200.000 euros, no meio da populaça. Anunciam vidros duplos, tv satélite, insonorização total, portas blindadas e muitas outras coisas que fazem as novas classes sentirem-se seguras em bairros antigos e onde o povo anda à solta. No dia em que chegarem novos moradores àquela zona da cidade quem garantirá a alma do bairro? Quem chamará os miúdos às esquinas, como a senhora de ar robusto, no mínimo robusto, que arrastava o neto por um braço e a quem gritava "é sempre a mesma coisa, é só brincadeira e casa nada"? Quem pendurará a roupa nos estendais? Não sei quem irá ali viver. Mas não será nenhum artesão indiano, nem a matrona de seios melancia, nem o mangas da esquina da Rua dos Cavaleiros. A reabilitação torna-se anchluss. A burguesia anexa os espaços do povo. Que há-de ir viver para a periferia. Criando aí novas mourarias. E assim sucessivamente.

Crónica em "A Planície" (1.3.2015), retomando um texto anterior.


Outros exotismos: pintura do orientalista alemão Gustav Bauernfeind (1848-1904) , representando uma rua de Damasco. Com um senhor vestido ao melhor estilo de explorador colonialista no meio da cena.

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