quarta-feira, 1 de abril de 2015

CARO TAHER GHALIA

Foi com surpresa que reconheci, nas notícias, a janela do seu gabinete. As imagens eram confusas, mas a legenda que passava em baixo, na notícia do telejornal, com a notícia do massacre no Museu do Bardo, não deixava margem para dúvidas.

Há já algum tempo que não falamos pessoalmente. Talvez seja agora o momento para retomar o contacto. Desde 2009 ou 2010 que várias ideias ficaram em suspenso. Durante a reunião, aí no Bardo, fizemos a habitual troca de livros: entreguei-lhe a minha tese, você ofereceu-me a monografia sobre a igreja de Hergla. Tomou por amabilidade minha a afirmação de que o seu estudo me fora decisivo. Foi mesmo, por causa das representações em dois mosaicos, que você estudou, e que me forneceram várias pistas na minha própria investigação.

O seu museu é um dos mais belos do mundo. Isso você sabe perfeitamente. Ao saber do horror do massacre, e sem me ocupar agora das raízes de tanta tragédia, ocorre-me o começo de um poema de Konstandinos Kavafis, datado de 1904:

“O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
(…)”

O poema de Kavafis termina num tom de resignação, quase com o desejo que os bárbaros permanecessem… Os riscos de hoje são esses mesmos, os da resignação e da capitulação, quando os sítios da cultura são aqueles que mais sofrem com os novos bárbaros. Tenho pequenos exemplos domésticos para lhe contar. Que vão da escala nacional a penosas barbaridades locais. Uma certa classe política detesta património e museus. Falámos disso, tal como falei desse tema, há uns bons anos, com o seu colega Fathi Bejaoui.

Voltarei, um dia destes, ao Bardo. Até porque não conheço a nova ala. Farei, como nas vezes anteriores, o percurso de que mais gosto: de Habib Thameur até ao museu, no metro de superfície, no meio da juventude local. Voltarei à frescura e à luz acolhedora das salas, ao branco das paredes e ao azul dos lambris. A coleção é sobretudo pré-islâmica, e as principais peças são romanas e cristãs. Nunca deixarei de me deter, longamente, ante o batistério de Kelibia, uma das mais belas peças de Arte que conheço. Ou em frente do Triunfo de Neptuno, trazido de Chebba, na altura em que essas coisas se faziam assim. E como tenho a mania dos detalhes nas obras de arte, voltarei a olhar a Ecclesia Mater, a de Tabarka.

Não lhes perdoaremos nem deixaremos de os combater. O ataque ao Bardo, e a horrível chacina de gente inocente, foi um ataque a todos nós. Aos que amam o Património e os Museus, decerto. Mas sobretudo aos que amam a tolerância, o Mediterrâneo e, se me permite que o diga, a nossa Tunísia.

Com amizade
Santiago Macias



(mail enviado ao meu amigo Taher Ghalia, diretor de um museu agora celebrizado pelas razões erradas)

Crónica publicada hoje em "A Planície" - a imagem reproduz o batistério de Kélibia (segunda metade do século VI)

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