Esta crónica, em tom epistolar, é um texto sobre a Amizade.
A pergunta tornou-se recorrente, ao longo dos últimos anos,
“tu és amigo daquele gajo da Saúde?”, sendo a pergunta, quase sempre, seguida
de um esgar de desaprovação.
Quase nunca me dei ao trabalho de explicar que amizades de há
40 anos não existem e se mantêm por acaso. Uma vez, uma camarada de partido
fuzilou-me “ele é teu amigo, mas não é amigo do Povo Português”. Por decência,
não a mandei ao sítio que me passou pela cabeça. Algumas das tuas lutas –
preços dos medicamentos e combate às grandes empresas farmacêuticas – pareciam
conduzidas por um perigoso comunista, inimigo dos monopólios. Diverti-me com o
silêncio da esquerda ante tal cruzada. Sabia perfeitamente que o fazias por um
sentimento de justiça a que a crença e a prática religiosa não são alheias.
Entrar para o Governo para ganhar menos dinheiro poucos o fariam. Fazer do
cargo uma missão, sem truques, manobras nem concessões, devia ser regra. Segui
atentamente esse percurso. Foi claro que não te desviaste de questões
essenciais. A Política é uma missão e é uma obrigação para todos nós. Não é um
privilégio, muito menos um emprego, menos ainda um trampolim. Nisso estamos de
acordo. Em muitas ocasiões discordámos frontalmente. Na nossa amizade, há lugar
e espaço (e muito, benza-o Deus) para as divergências políticas e ideológicas.
Percebi, quando na passada quinta-feira nos encontrámos, que
irias encetar uma nova fase na tua vida. Não disseste uma só palavra sobre o assunto.
Há silêncios que dizem mais que as palavras. Lembrei-me de um conto de Jorge
Luis Borges, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, onde, a dado momento, se lê “[era] una de esas amistades inglesas que
empiezan por excluir la confidencia y que muy pronto omiten el diálogo”. A
nossa amizade não é nada britânica, ainda que não exclua o silêncio. Essa tua
amável e educada reserva, que te tornava popular ante as nossas colegas de
turma e referência ante as mães de todos os alunos, refinou-se com os anos.
Já lá vão 40 anos desde os dias em que
partilhávamos carteira no Liceu Nacional de Queluz. Muitas voltas o mundo deu.
Aos 13 anos querias, obstinadamente, ser gestor. Previas que eu seria um
escritor de sucesso. Aí falhaste redondamente. Nem escrita, nem sucesso.
Contas feitas, temos agora um pouco mais
de tempo. Vou retomar o projeto de exposição sobre os Cristos que o teu pai
pintou. Prometo-te que levarei menos tempo que com a montagem do documentário
que, no descaramento dos nossos 17 anos, sobre ele fizémos. O filme, “Moita
Macedo, pintor e poeta na revolução”, foi terminado em 2013. Creio ter sido a
tua única experiência como assistente de realização. Sem filme e com menos
ingenuidade, mas com o empenho de sempre, temos a montagem e exibição dos
Cristos de Moita Macedo pela frente. É por esse caminho que vamos.
Um abraço do teu amigo Santiago
Frame de “Moita Macedo, pintor e poeta na revolução”
Texto publicado hoje em "A Planície"
Sem comentários:
Enviar um comentário