quinta-feira, 3 de março de 2016

NOBRE ARTE

Devem ter passado quase 40 anos. O episódio passa-se em 1978 ou 1979. O João tinha uns amigos de ar equívoco (estou a ser gentil...), que viviam na Porcalhota e que um dia o convenceram a levar-me ao boxe. A regularidade dos eventos era enigmática e a identidade dos pugilistas ainda o era mais. Num belo sábado à noite, deixei-me conduzir, sem especial entusiasmo, até ao Pavilhão dos Desportos. A minha falta de interesse foi compensada por uma noite memorável, e da qual guardo impressivas recordações. Não havia muito público, que se concentrava na bancada oposta à nossa, “ainda bem, que isto é capaz de dar barraca”, disse o João entre dentes, e eu não percebi onde poderia estar a barraca, a despeito de alguma agitação nos “tendidos”... Fomos para a parte de cima das bancadas e foi uma má opção. O fumo sobe e como toda a gente tabaqueava desalmadamente, às tantas aquilo parecia Londres, ouvi dizer que é assim, que nunca lá fui. Nevoeiro cerrado e visibilidade limitada.

E eis que entram os atletas. Grande e ruidoso entusiasmo “isto é boxe! isto é boxe”, berravam as claques. Ainda não era, mas ia ser. No primeiro combate, entrou no rinque, veloz, um boxeur, fazendo enérgicos exercícios de aquecimento e dando, em jeito de cumprimento, um rodopio rápido à Alexander Zaitsev. “Este gajo é bom”, sentenciou o João, fingindo sabedoria. Não era nada, o gajo era uma treta e, mal se berrou “seguuuuuuundoooss foraaaaa!”, já tinha sido aviado pelo adversário, um careca com estilo de urso, que lhe enfiou um banano de dimensões homéricas. Lá foi o Zaitsev numa padiola. Recuperou depressa, ainda bem, mas o KO estava consumado. O segundo combate foi mais complexo. Andaram para ali aos abraços o tempo todo e a decisão foi aos pontos. “Oh pá, parte os cornos a esse cabrão”, gritava um atrás de mim e nem me atrevi a virar a cabeça para trás. Depois foi o bom e o bonito. O público discordou da decisão. Discordou é maneira de dizer. Os adeptos das Águias da Musgueira resolveram treinar a nobre arte com a claque da outra equipa, da qual não recordo o nome. Um combate de boxe, todos contra todos, escada acima, escada abaixo, até chegar a polícia. Estava consumada a barraca, que continuou enquanto a comitiva amadorense saía a trote, em direção à segurança do ar livre. Fiquei sem saber o resultado, e os jornais do dia seguinte ignoraram a agitação. Tristes tempos esses, em que não havia reportagens da CMTV...

Não voltei ao boxe. Hoje disso me arrependo. O mundo mudou e esse Portugal popular e de chinela no pé é quase uma realidade distante. Hoje é tudo sério e “clean”, ainda que só na aparência, porque quanto mais “clean” pior. Ouvi dizer. O boxe, numa vertente mais rigorosa, acabou curiosamente por marcar pontos, por essa altura. João Manuel Miguel (Paquito) representou o nosso País nas Olimpíadas de Moscovo, em 1980. Foi derrotado, nos oitavos-de-final, pelo futuro campeão, o soviético Shamil Sabirov.

Já passaram muitos anos. Demasiados, poderei dizer. Ainda hoje recordo o som da multidão aos urros “isto é boxe”, o ambiente toldado, os pugilistas de qualidade duvidosa, duvidosa é favor, as claques numa cena de pancadaria medonha, e a voz protetora do João “vamos embora enquanto é tempo”.

Se tenho saudades? Não tenho. Mas acho graça lembrar episódios assim…

Crónica publicada em "A Planície" de 1.3.2016

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