Dobrada a casa dos 50 anos olha-se o mundo, pela primeira vez, de forma
diferente. Uma passagem de “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar, lido
na juventude, faz sentido pela primeira vez: “assim
como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao
entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da
costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte”. Deitamos contas ao tempo
que passou e temos a certeza de estarmos a mais de metade do caminho. Impercetivelmente, passámos essa metade
sem nos darmos conta. Foi tudo demasiado rápido e o tempo é, ele mesmo, agora
mais rápido.
Há muitos sítios onde já não irei, outros onde já não regressarei. Olho
os rapazes, que cresceram depressa demais. Tento imaginar como será o seu
aspeto quando tiverem 70 anos e depois desisto da tarefa, por inútil e sem
solução. Dentro de 20 anos já não estarei ao serviço do Estado, se dentro de 20
anos ainda por cá andar. Há 20 anos, o tempo parecia infinito. O Manuel tinha
três anos, a Luísa ainda não chegara. O espectro de Adriano torna-se real: “não
deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem,
uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada;
sempre assim foi; é assim para todos nós”.
Olhando a minha linha da costa, penso muitas vezes em que sítio gostaria
de viver um dia. Um nome emerge, sempre, sem que consiga explicar racionalmente
porquê. Estive nessa cidade durante apenas uma semana, em trabalho. Foi há
algum tempo. Não me recordo do caos e da poluição, de que tanto ouço falar. Mas
lembro-me muitas vezes dos limoeiros e da luz translúcida da cidade. Recordo o
espanto de, em pleno bairro de Al Abajiyyah, ver ao longe, mas de forma nítida,
as pirâmides de Gizé. Que, depois, apareciam e se escondiam, em várias ruas e
em diferentes perspetivas. Tenho uma imagem impressiva das casas otomanas. Da
mesquita de Ibn Tulun. Do bairro copta e da igreja de S. Jorge. Do fumo dos
narguilés no Café El-Fishawy, onde o empregado me tratava, gentilmente, por
“habibi”. De ter cruzado o Nilo numa faluka, lamentando não conhecer, nessa
altura, o relato do persa Naser-e Khosraw (1004-1088), que nos deixou uma descrição de uma procissão habitual no Cairo
fatimida, e que celebrava a fertilidade proporcionada pelo rio.
No extraordinário Mémoires des deux rives Jacques Berque confessa,
durante um regresso ao Cairo "pergunto-me, para minha grande surpresa, se
não seria aqui que eu me deveria radicar até ao fim dos meus dias...". Uma
ida a uma cidade pode resolver dúvidas que muitas outras experiências não
resolveram. Começo a ter essa certeza.
Pátio da mesquita de Ibn Tulun (primavera de 2007)
Artigo em "A Planície" (1.11.2016)
Também adorei por lá algum tempo!
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