terça-feira, 1 de novembro de 2016

CAIRO

Dobrada a casa dos 50 anos olha-se o mundo, pela primeira vez, de forma diferente. Uma passagem de “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar, lido na juventude, faz sentido pela primeira vez: “assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte”. Deitamos contas ao tempo que passou e temos a certeza de estarmos a mais de metade do caminho. Impercetivelmente, passámos essa metade sem nos darmos conta. Foi tudo demasiado rápido e o tempo é, ele mesmo, agora mais rápido.
Há muitos sítios onde já não irei, outros onde já não regressarei. Olho os rapazes, que cresceram depressa demais. Tento imaginar como será o seu aspeto quando tiverem 70 anos e depois desisto da tarefa, por inútil e sem solução. Dentro de 20 anos já não estarei ao serviço do Estado, se dentro de 20 anos ainda por cá andar. Há 20 anos, o tempo parecia infinito. O Manuel tinha três anos, a Luísa ainda não chegara. O espectro de Adriano torna-se real: “não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós”.
Olhando a minha linha da costa, penso muitas vezes em que sítio gostaria de viver um dia. Um nome emerge, sempre, sem que consiga explicar racionalmente porquê. Estive nessa cidade durante apenas uma semana, em trabalho. Foi há algum tempo. Não me recordo do caos e da poluição, de que tanto ouço falar. Mas lembro-me muitas vezes dos limoeiros e da luz translúcida da cidade. Recordo o espanto de, em pleno bairro de Al Abajiyyah, ver ao longe, mas de forma nítida, as pirâmides de Gizé. Que, depois, apareciam e se escondiam, em várias ruas e em diferentes perspetivas. Tenho uma imagem impressiva das casas otomanas. Da mesquita de Ibn Tulun. Do bairro copta e da igreja de S. Jorge. Do fumo dos narguilés no Café El-Fishawy, onde o empregado me tratava, gentilmente, por “habibi”. De ter cruzado o Nilo numa faluka, lamentando não conhecer, nessa altura, o relato do persa Naser-e Khosraw (1004-1088), que nos deixou uma descrição de uma procissão habitual no Cairo fatimida, e que celebrava a fertilidade proporcionada pelo rio.
No extraordinário Mémoires des deux rives Jacques Berque confessa, durante um regresso ao Cairo "pergunto-me, para minha grande surpresa, se não seria aqui que eu me deveria radicar até ao fim dos meus dias...". Uma ida a uma cidade pode resolver dúvidas que muitas outras experiências não resolveram. Começo a ter essa certeza.

Pátio da mesquita de Ibn Tulun (primavera de 2007)
Artigo em "A Planície" (1.11.2016)

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