sexta-feira, 26 de julho de 2019

O ELOGIO DA BURACA

         “Você mora onde??”. Várias vezes tenho sido surpreendido com esta pergunta. O tom é quase de alarme. Podia “iludir” a questão e dizer “na Amadora”. Ou, de forma ainda mais dissimulada, “muito perto da estação de Benfica”. Mas não, a Buraca é a Buraca. É onde estou e onde gosto de estar. O nome é, quase sempre, sinónimo de terror. Como se dissesse “vivo no South Bronx”. Ou “em LA South Central”. Ao fim da rua, a menos de 400 metros, fica a Cova da Moura. Que é sinónimo de periódicas confusões.
         A janela da cozinha fica virada para um local de passagem. Ao longo do dia, quando lá estou de dia, é uma janela sobre o mundo. Gente que vai para o trabalho ou do trabalho regressa. Emigrantes africanos ou cidadãos portugueses de origem africana passam a toda a hora. O passo deles tem um ritmo musical ou sou eu que assim quero que seja? Há reformados, que o bairro tem cada vez mais reformados, e há ainda um ambiente de família. Há gente que se conhece há décadas. A dona do supermercado pergunta-me pela Isabelinha com regularidade. A senhora do rés-do-chão em frente trabalhou em Moura e ainda se lembra das ruas, descrevendo-mas como elas eram há 50 anos. O dono do quiosque dos jornais é da Amareleja. A praceta é um mix de alentejanos, de beirões e de população de origem africana. Afinal, foi o bairro que deu origem aos BURAKA SOM SISTEMA. Na Buraca não há condes nem viscondes. Se há, é porque faliram. Os carros velhos são tantos como os novos. O bairro está entre a memória dos subúrbios de outrora – oficinas nas traseiras, cafés de ar pouco próspero – e a modernidade que aí vem. Num quintal das traseiras há uma figueira, a dar um toque de ruralidade. Mais longe, a uns 100 metros, e do outro lado da Estrada da Circunvalação, há sempre música num bairro habitado maioritariamente por ciganos. O facto de usar chapéu já deu origem a divertidos equívocos.
         Volto à janela e o bulício continua. Novos, velhos, continuam a passar a ritmo incessante. Ao fim do dia, quando a noite se fecha, são mulheres anafadas, na casa dos 50/60 anos, que regressam das empresas onde trabalham nas limpezas. Não é raro que tenham dois empregos: 14 horas de trabalho, mais 2 em transportes vários, mais as compras, mais a família. Dessas vidas ninguém se lembra, e a elas não chegam as condecorações nem o elevador social. É neste ambiente que regresso muitas vezes a casa, no 50 ou no 54.
         “Você vive na Buraca??”. E eu que sim, e gosto daquele ambiente de mistura e popular. Um bairro com gente autêntica e onde ainda há crianças no parque infantil e no polidesportivo ao virar da esquina.

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