terça-feira, 1 de outubro de 2019

A FUTURA FRAGILIDADE DO PASSADO

Não é que fosse o dia ou momento para “aquelas coisas”. Mas ao regressar a Portugal assaltou-me a dúvida “Ibahernando não será por estas bandas?” De facto, assim era. Ibahernando fica 14 quilómetros a sul de Trujillo, na província de Cáceres. A aldeia estava deserta e as duas pessoas a quem mencionei a existência de uma basílica visigoda nunca de tal tinham ouvido falar. Depois de algumas voltas pela carretera CC-24.2 (nome pomposo para tão secundária via) encontro casualmente os proprietários da Dehesa de Magasquilla de los Donaire, onde o sítio arqueológico se encontra. Da basílica nada resta, clarificam. E, contudo, o edifício tinha estruturas visíveis, dali se retiraram placas funerárias romanas e uma inscrição, consagrando a igreja a Santa Maria, na era de 673 (ou seja, 635 d.C.). Hoje não há nada e é preciso ir ao Museu de Cáceres para consultar o espólio que dali saiu.

Muito pouco é também o que se vê em San Pedro de Mérida, onde estivera em 2008, durante um congresso em dias gélidos. As ruínas estão à vista, ao lado da igreja, de forma anónima e sem explicação. Reconhece-se a zona do altar, e pouco mais. É preciso recorrer a um texto antigo (1962!), de Alejandro Marcos Pous, para ler o que ali se torna difícil de decifrar.

Funciona agora a máquina do tempo. Revejo o inverno 1983/84, em que tomava o caminho da delegação do Instituto Arqueológico Alemão, na Avenida da Liberdade. Um trabalho sobre as basílicas paleocristãs começou a apontar-me um caminho. Os textos de Enrique Cerrillo Martín de Cáceres (n. 1950), então consultados, bem como o monumental estudo de Pedro Palol (1923-2005), foram decisivos. Depois, viriam os estudos, não menos densos, de Paul-Albert Février (1931-1991) e de Noël Duval (1929-2018), sobre o Norte de África. Uma parte significativa desses trabalhos foi usada no doutoramento; outros aguardam novos estudos, que se farão ou não…

O envolvimento na reabilitação da basílica paleocristã de Mértola (1991/93) deu-me a momentânea ilusão de que é possível uma sistemática recuperação do passado. Não o é. A dimensão da tarefa da recuperação dos sítios arqueológicos é uma manta de Penélope, feita e desfeita a cada momento. A fragilidade das igrejas alto-medievais e das mesquitas rurais torna difícil a sua conservação. O esquecimento é maior que a vontade da recordação. Nas áreas urbanas, mais controladas e protegidas, as coisas são um pouco mais fáceis. Nos sítios rurais, o panorama é pior. Longe de tudo, pouco visitados, pouco glamorosos, vão caindo, aos poucos, no esquecimento e na ruína. Dizia-me Miquel Barceló “o poder está nas cidades e os urbanos não querem saber do campo nem dos camponeses”. Nem daquilo que nos deixaram, naturalmente. A finitude, e os limites físicos, da investigação tornaram-se-me ainda mais claros ao sol da Extremadura, naquele final de manhã de domingo. É difícil parar. Mas temos de ter claro que o esquecimento se sobreporá a todos os nossos gestos e que o futuro do passado é marcado por uma fragilidade que se torna doloroso avaliar.

Crónica publicada hoje, em "A Planície"

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