terça-feira, 5 de novembro de 2019

AGADEZ, DE NOVO

Há sítios assim, como Agadez, que se tornam estranhas obsessões. Como Tombuctu. Em 2008, estive lá perto e decidi não ir. Provavelmente fiz bem. Agadez voltou a cruzar-me o dia, há pouco, com uma fotografia de Philippe Joudiou (1922-2008). Foi tirada em 1950, ainda eu não era nascido. Agadez hoje já não é assim, seguramente. A irrecuperável imagem onírica é, contudo, a que me ficará.


Grandes São os Desertos, e Tudo é Deserto

Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 

Grandes são os desertos, minha alma! 
Grandes são os desertos. 

Não tirei bilhete para a vida, 
Errei a porta do sentimento, 
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
Senão saber isto: 
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
Para adiar todas as viagens. 
Para adiar o universo inteiro. 

Volta amanhã, realidade! 
Basta por hoje, gentes! 
Adia-te, presente absoluto! 
Mais vale não ser que ser assim. 

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 

Mas tenho que arrumar mala, 
Tenho por força que arrumar a mala, 
A mala. 

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 

Tenho que arrumar a mala de ser. 
Tenho que existir a arrumar malas. 
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
Sei só que tenho que arrumar a mala, 
E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 

Ergo-me de repente todos os Césares. 
Vou definitivamente arrumar a mala. 
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la; 
Hei de vê-la levar de aqui, 
Hei de existir independentemente dela. 

Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
Salvo erro, naturalmente. 
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 

Mais vale arrumar a mala. 
Fim. 

Álvaro de Campos, in "Poemas"

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