Numa recente entrevista ao “Diário de Notícias” dizia, textualmente, um desses super-críticos de vinhos “um problema é que Portugal também produz muito lixo. Os vinhos de 4 euros do supermercado, coisas dessas (...)”. A frase é de uma pedantaria sem limites. Lendo o resto da entrevista, com frases tão complexas como as descrições sobre aromas e tabacos que enchem os contra-rótulos de tantas garrafas, fiquei a pensar “ele saberá tudo sobre castas e evoluções, mas não sabe o que é o calor humano que há num simples copo de vinho”. Vinho tem a ver com amizade, com presença e com convívio. O mais espantoso copo que me ofereceram foi há muitos anos, numa aldeia nos confins de Mértola. Era um carrascão violento. A garrafa, de um agricultor já bastante idoso, foi aberta com gestos de preciosidade. O homem estava a dar-me o que era dele. E era tudo o que ele tinha para me dar. Para além da sua enorme generosidade. Beber vinho é isso, essa comovente proximidade, antes dos “aromas evoluídos” e das “sugestões de frutos silvestres”.
Lembro-me desse dia de há quase 30 anos, tal como me recordo dos passos dados com o Manuel Ramalho, num final de manhã, em dezembro de 2016. Era um sábado de feira do vinho e fomos Amareleja fora, numa peregrinação que foi incorporando jovens da aldeia. Os copos bebidos foram poucos, mas o ambiente de fraternidade foi muito grande. Um e outro completaram-se. Homero, na Odisseia, fala no “roxo ardente vinho”. O especialista dos vinhos caros não sabe o que isso é. Nunca foi ao Liberato, nem ao Tapas, nem ao Barriga Cheia, nem ao Vela. Johannes Vermeer parece ter estado no Vela e desenhado o chão, um dia, há muito tempo...
Na primavera deste ano, fui à adega de um senhor mais velho, de gestos suaves e de grande cordialidade. Uma pessoa "à antiga", se assim se pode dizer. Queria oferecer-me um par de garrafas da sua produção. Fiquei sensibilizado, mas, sobretudo, enormemente surpreendido. Afinal, o par de garrafas eram umas caixas... Vinho forte, denso, encorpado e saboroso, temperado pela amizade. Beber vinho sem amizade, ou a sós, é vício e tristeza. O meu vinho não é o das “harmonizações”, nem o do “fine dining”, em sítios com pessoas que não conheço nem voltarei a encontrar. Coisas como “tons de flores e especiarias frescas”, “notas de bergamota”, “fumado, salino, com as frutas pretas e do bosque por trás, há notas doces e tostadas da madeira, compotas” ou ainda “frutos do bosque, violetas, notas discretas de madeira de estágio” e “muito balsâmico, com notas de eucalipto e mentol” nada me dizem. São palavras abstratas e que não rimam com amizade, conversa, risos, cante e com aquele rumor de que são feitas as tabernas.
Dentro de dias é a feira da Amareleja. Lá estarei. Cada dia que passa me fazem mais sentido estas palavras, escritas há anos: “entre o céu e a terra se fez a Amareleja. Entre o céu e a terra se faz o vinho da Amareleja, que neste livro tantas vezes encontramos. E que tão presente está na imagem da aldeia. Partamos com o vinho em direção a um céu feérico. Não esqueçamos nunca o poder mágico da terra e do céu feérico sobre nós”.
Crónica em "A Planície"
Ao ler este seu comentário, lembrei-me de um outro - O COMPAL DA NESPERA - o que eu ri!... Não lhe pedi autorização , mas não resisti ,imprimi-o e ofereci a amigos , ligados as lides dos vinhos,que deram algumas gargalhadas!...
ResponderEliminarCom um abraço e desculpe o não pedido de copiar, Manuel Piçarra