quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

O CAMINHO DA NOSSA PROCISSÃO

             Durante muito tempo me questionei sobre a antiguidade do percurso da procissão do Domingo da Festa, em honra de Nossa Senhora do Carmo. Continuo sem saber quando começou a tradição, que faz o caminho (2100 metros, ao todo) por entre as ruas da Moura, cruzando a cidade que se foi construindo entre os séculos XIII e XVIII. Mas tenho a certeza que, em julho de 1816, já era (quase) esse o trajeto. Porque desse ano temos testemunho de uma procissão. O falecimento da rainha, D. Maria I, ocorrera em 20 de março, no Rio de Janeiro, mas só em finais de julho as forças vivas da vila de Moura organizaram o cortejo fúnebre.
No livro de atas da vereação de 1816 da Câmara de Moura encontra-se esta descrição (fols. 61-61v.): “no dia 29 de julho de presente anno de 1816 se ajuntarão nas casas da Camara desta villa todos os officiaes de justiças, misteres, e todos os pautados em procuradores da Camara, e em veriadores, que para esse fim tinhão sido avisados no dia antecedente. Sahio das ditas casas a porcição funebre, formada em duas allas, puchadas pelo cavalheiro José Mathias de São Paio Lobo, que levava o estandarte real de lutto, hindo adiante delle huma escolta de cavalaria do regimento numero 5, que emtão se achava de quartel nesta mesma villa. Atras do estandarte seguião-se todos os officiaes de justiça, depois destes os misteres, logo os pautados em procuradores da camara, depois deles os pautados em veriadores, e procurador da camara autual, e na sua retaguarda a companhia de milicianos, que há nesta villa, comandada pelo tenente della Bentto Maria Segurado. Caminhou a porcição pela Praça em direitura à Rua do Morgadinho, dahi à Rua de Serpa, aonde quebrou o primeiro escudo o veriador mais velho o capittão mor desta villa Francisco de Paula Limpo Quaresma. Seguio a porcição athe a Rua de Santo Agostinho, e fazendo volta o Rocio da Gloria, ahi quebrou o segundo o veriador segundo Marianno Bestel Vinha. Continuou a porcição pela Rua de Gonçalgaracia [sic], e emcaminhado-se a Rua da Assaboeira de frente do passo della quebrou outro escudo o terceiro veriador Sebastião Casqueiro Viera [sic] Gago. Daqui seguiu a porcição pela Rua Longa em direitura a Igreja Matriz de São João Baptista, e fora do adro della se repetio huma piquena oração.”
Os aspetos organizativos são interessantes, com a presença de uma tradição antiga, a da quebra dos escudos representativos da rainha falecida. Mas o mais relevante é o percurso da procissão, que é o mesmo da que ainda hoje se cumpre na Festa de Nossa Senhora do Carmo. Mudaram os nomes de todas as ruas, mas os locais de passagem do cortejo não sofreram alterações: da praça passa-se à Rua do Morgadinho (Miguel Bombarda), depois à Rua de Serpa (Serpa Pinto), em direção à Rua de Santo Agostinho (9 de abril). A partir desse ponto inicia(va)-se o regresso. Primeiro pelo Rocio da Glória (Largo Gago Coutinho), depois pela Rua de Gonçalo Garcia (5 de outubro), infletindo para a Rua da Assaboeira (Dr. Garcia Peres), antes de chegar à Praça pela Rua Longa (Santana e Costa). Como alterações dignas de registo refira-se o facto de hoje a grande procissão de julho alternar entre as ruas de Santana e Costa e de Arouche. E de não terminar, como é evidente, em S. João, mas sim no Carmo.
O tempo passou. E passará. A nossa Moura permanecerá. Esta memória da vila oitocentista é uma prova de que os gestos do quotidiano são também, uma construção no tempo. Uma evidência de que tudo aquilo que fazemos, nas nossas terras, não é fruto do acaso.

Crónica publicada hoje, em "A Planície"

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