quarta-feira, 1 de junho de 2022

O POÇO DA MORTE E O GRANDE NELSON

Faz hoje 16 anos que este texto foi publicado. Recebi hoje (!) um comentário do neto do Grande Nelson. Grande mesmo. Foi, posso garantir à distância destes anos, um dos momentos chave da minha infância.


O GRANDE NELSON

“Há belhetes na belheteira” anunciava a lata pintada em frente ao poço da morte. O poço da morte foi a minha ruína e quando chegou o último dia de feira não sobrou um tostão dentro da carteira de plástico preto com o emblema do Benfica. Era linda a minha carteira de plástico preto com o emblema do Benfica e nunca percebi porque é que lá em casa só eu gostei dela. 12$50 (uns seis cêntimos) foi o investimento, logo no primeiro dia, embora me tivessem dito para não comprar nada no primeiro dia de feira, porque era o dia dos aldeanos.

Com o que sobrou comprei o primeiro de vários belhetes. Subia-se por uma escada exterior, do lado direito do poço da morte. Cada degrau era um passo mais no caminho da angústia. Mais um passo, mais ansiedade, e a expectativa de esperar que não fosse naquele dia o fim do Grande Nelson. Ingmar Bergman gostaria de conhecer o poço da morte e a angústia de Nelson, mas na Suécia de certeza que não há poço da morte.

O poço era uma parede vertical em madeira, com uma pequena inclinação junto à base. Do varandim, nós, os outros, podíamos ver o Grande Nelson desafiar a morte. Primeiro entravam os filhos de Nelson em bicicletas a pedais, pedalando furiosamente, primeiro inclinados, depois completamente na horizontal, desafiando a lei do outro nelson. À distância de mais de 30 anos impressiona a temeridade dos rapazes, que a certa altura se cruzavam num bailado arriscado. Talvez fossem temerários, mas nada superava o Grande Nelson. A moto fazia um barulho terrível, como se fosse explodir a cada aceleração. Era um bocadinho de espectáculo para dar mais uma justificação ao belhete, mas nós ficávamos ainda com mais respeito. Depois sim. O Grande Nelson arrancou. Parede acima, parede abaixo. Uma pirueta, depois outra. Nós angustiados, no varandim em volta do poço, o Grande Nelson de sorriso rasgado, a morte derrotada com tanta audácia, as leis da física esmagadas com tanta coragem. Mas o grande momento estava para vir. Quase no final da actuação o Grande Nelson puxou de uma bandeira nacional, tapou a face e abriu os braços. Ele e a moto continuaram, poço acima, poço abaixo. Depois parou a moto, tirou o capacete e os óculos à major Alvega. Olhou para nós, à matador. Aí o poço quase veio abaixo. A malta deu-lhe a ovação que ele, nesse altura já quase imortal, queria e merecia. Eu fiquei à beira das lágrimas, com tanta angústia, tanta emoção e tanto patriotismo. Desci as escadas do lado esquerdo do poço da morte jurando que todos os dias da feira iria prestar homenagem ao Grande Nelson. E fui.

No dia 10 a feira acabou. Nunca mais vi o Grande Nelson. Nem o poço da morte, nem a inesquecível lata que anunciava os belhetes e a belheteira.



Não consegui qualquer referência sobre o grande Nelson. A crónica foi publicada no jornal A Planície de 1 de Junho de 2006.




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