quinta-feira, 2 de novembro de 2023

PORTUGAL NA ESPANHA ÁRABE

            “Como é se tornou historiador?”. A pergunta é-me feita, com razoável frequência, pelos meus alunos. Gostaria de dar uma resposta poética ou criativa. Infelizmente, a realidade é crua: a família implorou-me que não fosse para Cinema ou para Jornalismo. Ainda hoje, não tenho a certeza de ter feito a opção certa...

            No fim de contas, tive uma sorte excecional. Trabalhar de muito perto durante década e meia com Cláudio Torres, ter sido aluno (e era o único naquele seminário!) no mestrado de José Mattoso, manter amizade próxima com António Borges Coelho é um “royal flush”. Não sei se há acasos, mas a leitura historiográfica mais fascinante dos meus 16-17 anos foram os quatro volumes do “Portugal na Espanha Árabe”. O resto, sei-o agora, partiu daí.

            O Borges Coelho fez 95 anos no passado dia 7 de outubro. Telefonei-lhe nessa tarde para o felicitar. No meio de uma conversa que se prolongou, disse “sabes, agora estou a preparar uma revisão do que escrevi sobre Leibniz; o gajo é um filósofo fantástico”. Não há reposta possível a este entusiasmo juvenil.

            “Portugal na Espanha Árabe”, editado pela Seara Nova entre 1972 e 1975, veio trazer-nos, há 50 anos, um mundo quase desconhecido. Borges Coelho, saído poucos anos antes das masmorras fascistas de Peniche (onde cumprira longa pena de prisão por ser resistente antifascista e militante do PCP), trabalhou à margem da Academia (que era, naquela época, maioritariamente, aborrecida e cinzenta), e passou para língua portuguesa autores de quem não se falava. Explicou, foi dos primeiros a fazê-lo com clareza, que a matriz cultural do sul português tinha fortes raízes no mundo islâmico e, de forma mais geral, no Mediterrâneo. Nomes como al-Idrisi, ar-Razi ou Ibn Hayyan foram, então, divulgados. Mais importante ainda, poetas do ocidente peninsular como al-Mutâmide (natural de Beja), Ibn Bassam (de Santarém), Ibn Abdun (de Évora), Ibn al-Milh (de Silves) foram trazidos ao conhecimento público. São, todos eles, escritores de grande talento e sensibilidade, que juntam às coisas comuns da terra o lirismo, uma visão cosmopolita do mundo e um erotismo nem sempre discreto.

            Há um “antes” e um “depois” do Portugal na Espanha Árabe. É uma obra ímpar, informal e feita com um mais que visível entusiasmo. Foi também uma obra de resistência política e de desafio ao marasmo universitário da época. Depois, vieram os trabalhos em Mértola, que ele inspirou, e depois um trabalho incessante de dezenas de investigadores. Que resultaram em mais e mais conhecimento. Em nenhum, contudo, encontramos a versatilidade de Borges Coelho, a sua qualidade de escrita e o seu intenso sentido poético. Traduziu Ibn Ammar (1031-1086), nascido no Algarve, e passou para a nossa língua este poema invulgar, belo e simples, intitulado “Leitura”: “Minha pupila resgata o que esta preso na página:/ o branco ao branco o negro ao negro”. Como faz aquele que me lê faz, neste momento.


Crónica hoje, em "A Planície"


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