Texto lido na apresentação do livro do centenário da Casa do Alentejo:
Um dos meus rituais de juventude passava por esta casa. Vinha da faculdade, saía do metro e rumava à Casa do Alentejo. O bar, com a obra de Rogério Ribeiro a servir de enquadramento, era ponto de encontro regular de muitos alentejanos expatriados que aqui se encontravam antes de rumarem aos subúrbios.
Os tempos mudaram. Hoje já não é assim. A Casa do Alentejo está no mesmo local. Mas o bar já não é no mesmo sítio. E a geração dos expatriados avançou na idade e já pouco sai.
Esta Casa é-nos, felizmente, familiar. Semanas de municípios, lançamentos de livros, almoços de confraternização, sessões políticas, muitas sessões políticas, música, poesia, estas paredes viram de tudo um pouco. Todos nós cá viemos, muitas vezes. Porque é a nossa Casa.
E cem anos não é coisa pouca. Daí que se tenha decidido editar um livro comemorativo. Que é sobre a Casa do Alentejo e é sobre a nossa região. A diversidade arquitetónica que aqui encontramos corresponde às múltiplas diversidades e contrastes que encontramos na nossa região. Sob uma aparente unidade escondem-se múltiplas realidades.
Há um conjunto de textos que nos enquadram no espaço e no tempo. A geologia, a história, a arqueologia são convocadas para nos darem uma explicação cabal do que aconteceu e de como aconteceu. Esse é o pano de fundo. O livro desenvolve-se depois num conjunto de tempos, de temática muito ampla, onde muitas conversas cabem. As permanentes citações e referências a amigos presentes ou a outros que já partiram fazem também do livro uma verdadeira fraternidade alentejana. Páginas afetuosas por onde passam as recordações (e vou citar apenas alguns) de Luís Jordão, de Vitor Paquete, de Manuel Geraldo, de António Galvão, de Miguel Serrano, de Urbano Tavares Rodrigues, de Manuel da Fonseca... Há nomes que conhecia mal, como os de Victor Santos e de Fausto Gonçalves, que agora não só conheço melhor mas aprendi a respeitar. O passar do tempo apaga a memória dos homens. É uma lei da qual muito poucos se libertam. Fixar em texto e para a posteridade aqueles que ajudaram a construir esta casa não é tarefa secundária.
Esta Casa representa todos os alentejos deste mundo. O dos 400.000 habitantes que vivem nos distritos Beja, Évora e Portalegre e os outros que se espalham pela cintura industrial de outos tempos. Almada, o Seixal, a Piedade, a Amadora, Sacavém, quantos alentejos por aí andam. Os bairros de subúrbio superlotados têm contraponto no despovoamento transtagano. Dois deputados eleitos por Portalegre, três por Évora, três por Beja. Oito ao todo. É metade dos que a região elegia em 1976. Ao fim dos dias de trabalho eu próprio regresso à Amadora. A Venda Nova, a Damaia e o Bairro Janeiro são pedaços de um mosaico alentejano que, por estas bandas, vai desaparecendo aos poucos.
Todos os alentejanos que partiram pensam no regresso. Todos os que aqui estão olham para esse horizonte, que tantas vezes nos foge. Há hoje mais alentejanos fora da região que dentro do território. A narrativa de uma evolução é feita, com toda a clareza, por Jorge Gaspar, nas páginas deste livro. O Alentejo mudou muito, nestas últimas cinco décadas. Mudou a paisagem física, tal como se alterou a humana, tal como se transforma a paisagem política. O Alentejo já não tem proletariado rural. A Margem Sul já não tem proletariado industrial. O proletariado mudou de ramo. Está nas grandes superfícies, nas empresas de trabalho temporário e a consciência de classe é coisa dos manuais clássicos.
Todos estes alentejos estão presentes nas páginas deste livro. Ora é o Alentejo histórico que encontramos, ora o geográfico, ora o do debate político. Ora é memorialista e se ocupa do próprio edifício que é a sede da casa, ora convoca artistas, poetas e intelectuais. Não ficamos com uma mini-enciclopédia do Alentejo, nem com um dicionário de pessoas, locais e obras. Não era essa a intenção, afinal. Mas as dezenas de autores que colaboram neste livro do centenário ajudam-nos a compor um fresco da realidade alentejana no seu devir histórico. O Alentejo e a sua casa são o díptico de que se compõe este livro.
Resta-me felicitar os protagonistas, o João Proença, a Rosa Calado e o Fernando Mão-de-Ferro.Sei, por experiência, o que é garantir a entrega atempada de textos, fazer cumprir prazos de redação e de revisão e assegurar que ninguém falha (prefaciador incluído).
O livro é um testemunho importante de uma época. E é uma peça essencial para a história desta casa. A verdadeira saga que envolveu a compra do edifício seria hoje impossível, não tenhamos disso ilusões. O que nos torna a todos responsáveis por ela e nos obriga a fazer da Casa do Alentejo uma orgulhosa afirmação do nosso território.
Na última página do derradeiro texto do livro escreve Victor Encarnação “Sonhei que um dia havia de ter uma casa a morar / dentro do meu peito. / A Casa é o Alentejo”. É o final perfeito para um livro em que a ideia do regresso está, de uma forma ou de outra, sempre presente.
Tive o previlégio de intergrar os orgãos sociais que tomaram a decisão da compra do edifício. Uma decisão que nos obrigou a uma grande ponderação mas que entemos ser a melhor.
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