“O lugar onde o coração se esconde / e a mulher eterna tem a luz na fronte / fica no norte e é vila do conde”. Esta é a parte final do meu poema preferido de Ruy Belo. Todo o poema é uma sentida declaração de amor a um sítio. Lembrei-me dele, emocionadamente, ao ler, a meu respeito, esta frase simples, numa publicação no facebook, “esteve bastante tempo em Moura mas é da Amareleja”.
Fisicamente, não sou da Amareleja. Não nasci lá, nunca lá vivi, não andei lá à escola, não conheço as pequenas histórias do quotidiano, nem os detalhes das vidas e das famílias. Não foi lá o meu primeiro namoro, nem o primeiro cigarro fumado às escondidas, nem foi lá o meu primeiro beijo. A minha realidade quotidiana não foi, não é, a Amareleja. Mas está aqui, no corpo daquele que agora escreve, a genética de um sítio. A memória dos meus bisavós e a dos meus avós. Quando me perguntavam, ou perguntam, “mas a sua família, aqui na aldeia, é de onde?”, respondo, com segurança, “do Alto de Bombel”. É certo que não sou de lá. Mas aquela simples frase do meu amigo António Castelhano “esteve bastante tempo em Moura mas é da Amareleja” vale esse reconhecimento de convicta pertença emocional a um sítio.
Quando, no outro dia, vi o Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense avançar, pela nave do Panteão Nacional, não pude deixar de pensar, sorrindo para dentro, “os meus avós haviam de gostar de ver isto”. Escrevi um dia que a Amareleja é a paixão dos fortes. Roubei a expressão ao título de um filme de John Ford, mas isso é que menos interessa. Escrevi, no início de um texto para um livro intitulado “Amareleja”: “A terra é quente, as pedras escaldam. O calor molda o espírito e ajuda a afeiçoar o vinho. É assim o verão na Amareleja. Quando chegar o outono, o calor será um pouco menos. Haverá vindimas e depois virá o frio e depois haverá vinho novo. Por agora, o céu é quase sempre azul. Entre o céu e a terra se fez a Amareleja. Entre o céu e a terra se faz o vinho da Amareleja”. Sete anos se passaram. Escreveria, de novo, as mesmas palavras. E, talvez, outras mais, agora que o tempo passou e a passagem do tempo me tornou (ainda) mais livre.
Somei, ao longo da minha vida autárquica, vitórias e derrotas, momentos doces e amargos. E ganhei pequenas condecorações. Um dia, num 15 de agosto tenso, na Amareleja, um senhor mais velho, com quem continuo a manter relação de amizade, parou para me cumprimentar e para me dizer “vê-se mesmo que o senhor gosta de estar com o povo”. Agradeci polidamente, enquanto pensei “acabo de ganhar um pouco de paz e de ficar feliz”.
Fisicamente, não sou da Amareleja. Por todas as razões que escrevi mais acima, e por outras mais que poderia acrescentar. Mas a Amareleja é um dos sítios onde o meu coração se esconde. Portanto, sou de lá, sim senhor. Senti isso, com toda a tranquilidade do mundo, enquanto vi o Grupo do Terreiro descer a Rua de São Pedro, em Alfama. Voltei ao Panteão, a passo lento, pensando “acabo de ganhar um pouco de paz e de ficar feliz”.
Crónica em "A Planície"
Lindo! Adorei a descrição e a sensibilidade com que foi escrito, que também tocou o meu coração de Amarelejense convicta...é de pessoas como o Senhor que a Amareleja precisa. Seja benvindo Amarelejense de coração.
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