terça-feira, 30 de dezembro de 2008

ENTRE 2008 E 2009

Velas

Os dias do futuro ficam diante de nós
como fila de pequeninas velas acesas –
douradas, quentes, e vivas pequeninas velas.


Os dias passados ficam para trás,
uma linha triste de velas que se apagaram;
as mais próximas soltam fumo ainda,

velas frias, derretidas, e torcidas.


Não quero vê-las; dá-me dó a sua figura,
e dá-me dó lembrar-me da sua luz primeira.
Olho para a frente para as minhas velas acesas.


Não quero voltar-me para não sentir horror ao ver
que rapidamente se torna longa a linha escura,
que rapidamente se multiplicam as velas apagadas.

As delícias do poeta (1913)


O poema é de Konstandinos Kavafis (1863-1933) e data de 1899 (tradução de Joaquim Manuel Magalhães e de Nikos Pratsinis). A pintura é uma obra de Giorgio de Chirico (1888-1978).

Tanto um como outra expressam bem, creio eu, a imagem do tempo que passa.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

GAZA - A ILHA DOS MORTOS


A foto é de hoje, da France Presse. A legenda diz apenas "Corpos de cinco irmãos palestinianos, em Gaza". Não é necessário que diga mais. O quadro de Arnold Bocklin, A ilha dos mortos, ganha, à luz de Gaza, uma nova e terrífica dimensão.

domingo, 28 de dezembro de 2008

PÓS-DE-MINA NA IMPRENSA NACIONAL

Foi o Rafael quem me alertou para a notícia.
Vai daí soube que o Presidente da Câmara de Moura era a cara da notícia (página 9 do Público de hoje). Dispenso-me de comentários, uma vez que o texto em questão é mais que suficiente e elucidativo.


Segue a transcrição integral:


Autarca de Moura distinguido mundialmente
28.12.2008, Carlos Dias
Grupo norte-americano de justiça global classificou Pós-de-Mina como uma das personalidades do ano por projecto de energias alternativas
A José Maria Pós-de-Mina anda nas bocas do mundo pelas melhores razões. Onde quer que vá toda a gente lhe lembra o que nunca sonhou ouvir: o seu nome saltou de Moura para o mundo. Uma revista norte-americana com distribuição mundial (OneWorld) de que a maioria dos seus conterrâneos não sabe o nome, considerou-o uma das 10 personalidades do ano do projecto de energias renováveis que desenvolveu no concelho de Moura.

Os critérios de selecção deste prémio exigem o empenhamento dos escolhidos nas questões dos direitos humanos, na justa distribuição dos recursos naturais e económicos; promoção de meios de vida sustentáveis, entre outros (ver texto nesta página). José Maria Pós-de-Mina tem 50 anos. O presidente da Câmara de Moura é um cidadão discreto, mas ao mesmo tempo activista político desde os tempos da União dos Estudantes Comunistas. Está-lhe no sangue a filiação partidária. É filho, neto e sobrinho de militantes comunistas, alguns deles presos políticos nos anos 50 e 60 do século passado.Nasceu em Pias, em 1958, e estudou até ao 2.º ano do antigo ciclo preparatório em Serpa. Continuou os estudos na Escola Secundária de Moura, e mais tarde, já com família constituída, licenciou-se em Gestão Financeira pela Universidade do Algarve. Vive em Moura há 30 anos, onde é presidente da câmara desde 1998, e entretanto já obteve uma pós-graduação em Administração Pública e Desenvolvimento Regional na Perspectiva da União Europeia pela Universidade de Évora.Tudo no seu dia-a-dia corria em função das dificuldades que hoje qualquer autarca enfrenta no desempenho da sua tarefa, quando alguém lhe diz que tinha sido classificado no site da OneWorld como "presidente da câmara do futuro" da Europa. "Presidente da câmara do futuro? Eu?", foi o desabafo que lhe saiu vezes sem conta, antes de perceber o que lhe tinha acontecido. Depois quis saber porquê. A sua inclusão no grupo de finalistas está ligada ao reconhecimento do papel que tem tido na condução do processo das energias renováveis no concelho de Moura.Energia desde MarçoPós-de-Mina batia com a palma da mão na testa, ainda incrédulo. "Como é que lá pelas Américas o pessoal sabe o que faço e o que sou?", perguntava a si próprio.O seu empenhamento na causa das renováveis tomou corpo no ano 2000, quando os representantes de uma empresa lhe vieram propor que "acolhesse um projecto comunitário para a instalação de pequenas centrais solares".Nem hesitou. Viu na proposta que lhe foi apresentada a possibilidade de poder dar o primeiro passo num projecto que hoje tem uma dimensão mundial. As pequenas centrais solares foram substituídas por uma apenas que cobre 250 hectares de uma área na freguesia da Amareleja, onde os estudiosos foram descobrir que aquela nesga de terra recebe o maior número de horas solares da Europa. O investimento de 237 milhões de euros, disponibilizado na totalidade pela empresa espanhola Acciona, para produzir energia destinada à rede eléctrica nacional, financiou uma central com 46,41 megawatts (MW) pico e 35 MW de potência de injecção na rede. Está a produzir energia desde Março deste ano. Pós-de-Mina já nem quer lembrar os momentos em que esteve tentado a "atirar a toalha ao chão", tantos eram os obstáculos e as hesitações dos organismos do Estado e de potenciais interessados em desenvolver um projecto ao qual a autarquia nunca poderia dar corpo pelos colossais investimentos que eram necessários para a instalação da maior central fotovoltaica do mundo.Um novo projectoConsumiu muitas energias, "anos de vida", algumas desilusões e ataques de forças políticas opositoras que viam no empreendimento um objectivo megalómano, de promoção pessoal. Pós-de-Mina, que sempre fez questão de se manter equidistante de protagonismos, vê na obra que idealizou o exemplo concreto do que pode o sonho e a perseverança. Para si, a indicação para integrar o naipe de 10 candidatos ao prémio Personalidade 2008 só por si significa apenas que alguém lá fora consegue ver o que no seu país a luta política ofusca.O que é importante para Pós-de-Mina é a janela de oportunidades que a sua indicação para personalidade do ano pode vir a propiciar ao seu concelho: "Desde que atraia mais investimento e que esse investimento se traduza na criação de postos de trabalho, agradeço a quem indicou o meu nome." Em mãos tem já outro projecto de energias renováveis: a rede SunFlower, que envolve oito municípios de oito países europeus (Bulgária, Espanha, França, Grécia, Inglaterra, Itália e República Checa e Portugal). A personalidade de 2008 agradece a simpática expressão utilizada por um colega presidente de câmara mexicano que o designou "o autarca do futuro". "Ainda não tive o privilégio de o conhecer", diz José Maria Pós-de-Mina. "Como é que lá nas Américas o pessoal sabe o que faço e o que sou?", perguntou Pós-de-Mina quano soube da distinção.

OneWorld vai dos direitos humanos ao ambiente
A OneWorld é uma organização internacional com base nos Estados Unidos da América que liga diversas organizações não-governamentais e sem fins lucrativos em todo o mundo.Os seus principais objectivos são a defesa dos direitos humanos, a justa distribuição dos recursos naturais e económicos e a promoção de meios de vida sustentáveis e a defesa do ambiente, entre outros. É hoje uma das principais organizações de defesa da chamada justiça global.A revista em papel com o nome da organização e o sítio da Internet (
http://us.oneworld.net) são espaço de debate alargado a especialistas e investigadores mundiais nas mais variadas áreas.Este grupo de pressão "para um mundo melhor" foi criado pelos norte-americanos Peter Armstrong e Anuradha Vittachi em 1994. Em 1995 foi apresentado em Londres o sítio na Internet global (http://oneworld.net) e a partir daí foi criando laços com outras organizações em todo o mundo.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

CENTRAL DA AMARELEJA - DIA 1


Do blogue AMARELEJANDO:

A maior central fotovoltaica do mundo, com uma capacidade instalada de 46,41 megawatts (MW) pico e 35 MW de potência de injecção na rede, começou hoje a produzir em pleno, num investimento de 237,6 milhões de euros para produzir energia "limpa" para a rede eléctrica nacional durante 25 anos.

A central está instalada num terreno com cerca de 250 hectares, perto da vila de Amareleja, considerada a "terra mais quente de Portugal", e irá produzir cerca de 93 mil MW de energia por ano, o suficiente para abastecer 30 mil habitações. A energia produzida vai ser injectada na subestação de Alqueva.

Sem custos de fuel ou emissões, a central, por cada 90 mil MW de energia produzida, vai permitir poupar 152 mil toneladas de emissões de gases de efeito de estufa (CO2) em comparação com uma produção equivalente a partir de combustíveis fósseis.

(...)

Fica assim assinalado mais um marco na história deste grande projecto, que enche de orgulho todos os Amarelejenses.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

TODA A VERDADE SOBRE A CENTRAL FOTOVOLTAICA DA AMARELEJA


Imagem da central durante a construção (com a vila de Amareleja ao fundo)

PERDOEM-LHES!

A finalização da Central Fotovoltaica e a sua próxima entrada em funcionamento, bem como o projecto da Fábrica de Painéis, estão a dar origem a todos os delírios. Alguns revelam a mais absoluta falta de vergonha mas não são surpreendentes.

Perdoem ao PS/Moura pela falta de memória. Perdoem-lhes porque já esqueceram tudo o que disseram e já se esqueceram como votaram. Compreendam a posição deles (nunca estiveram de alma e coração com um projecto essencial ao desenvolvimento do concelho e agora não sabem que dizer) e perdoem-lhes. Desculpem-lhes a atitude que tiveram em 17.4.2002 (na Câmara) e em 29.4.2002 (na Assembleia) quando se abstiveram a propósito da criação da AMPER, a empresa que deu corpo ao projecto da energia fotovoltaica, porque queriam “conhecer este processo mais profundamente e perceber o que está por detrás desta questão para que não tomem uma posição da qual mais tarde venham a arrepender-se”. Oxalá já tenham percebido que por detrás da questão está o progresso da nossa terra.

Perdoem ao vereador do PS que declarou que a Central poderia vir a ser posta em causa devido a um eventual decréscimo dos dias de céu limpo, fruto de uma mudança climática causada pela barragem de Alqueva…

Perdoem-lhes porque vêm agora declarar que foi uma sorte (sic) a Câmara ter “encontrado” a ACCIONA, mas esquecem que os vereadores do PS não aprovaram a venda da posição accionista do município à ACCIONA (30.8.2006), assim não aprovaram as versões preliminar e final do contrato com a ACCIONA (3.1.2007 e 18.1.2007, respectivamente). Perdoem-lhes a amnésia e, principalmente, a falta de pudor.

Perdoem-lhes porque não aprovaram o licenciamento da 1ª e da 2ª fases da central (12.9.2007 e 16.1.2008). Relevem-lhes a temível falta de memória que os leva a esquecer a abstenção na ratificação do Plano de Pormenor da Central (7.11.2007).

Perdoem aos que dizem que este projecto é coisa pouca e que perguntam quais os benefícios, quando foram eles os primeiros a inscrever-se nas candidaturas à micro-geração e são eles os primeiros a beneficiarem do Fundo Social de 3 milhões de euros que este projecto já gerou. Perdoem-lhes porque se abstiveram quando foi necessário tomar decisões sobre o zonamento da UP 11 (19.7.2006), a tal onde está hoje a fábrica de painéis solares.

Por favor, perdoem aos vereadores do PS que votaram contra a constituição da empresa municipal que vai gerir o parque tecnológico de Moura (26.9.2007). Que votaram contra a desanexação dos terrenos no Baldio das Ferrarias (24.10.2007), necessários ao avanço do processo da Central. Perdoem-lhes ainda porque votaram contra a atribuição de uma comparticipação no custo da linha eléctrica (24.10.2007), num momento delicado do processo.

Perdoem, por favor e por caridade, ao vereador do PS que disse que “a duração do processo por si só denota como foram pertinentes algumas observações atendendo à complexidade do mesmo” (o que é que raio isto quererá dizer?). Perdoem-lhe o disparate de ter dito que “as tomadas de posição por unanimidade, características de países totalitários e fascistas, não me parecem ser uma mais-valia em regimes democráticos”.

Perdoem-lhes porque nunca quererão valorizar o papel do meu amigo José Maria Pós-de-Mina na condução deste processo. Perdoem-lhes, porque só o PS/Moura não quis entender a dimensão do projecto. Nos Estados Unidos sim (irónico, não é?), e o site americano us.oneworld.net escolheu José Pós-de-Mina como finalista de um prémio internacional. Finalistas em 2006? Evo Morales e Al Gore. Deve ser coisa pouca, portanto…

O Natal vem aí. Abram os corações e perdoem-lhes. E tenham a certeza que a falta de memória os vai voltar a atacar no dia da inauguração. Aí voltarão a querer aparecer como grandes protagonistas de um projecto pelo qual nada fizeram. Como dizia o outro, “é a vida”…

domingo, 21 de dezembro de 2008

O MAESTRO RICCARDO MUTI





Os directores de orquestra em verdadeira desordem capilar são um clássico da iconografia contemporânea. Comecemos a semana com estas imagens de Riccardo Muti dirigindo a abertura do Nabucco. Atenção às seguintes passagens: 0:17-0:25 / 1:12-1:28 / 2:12-2:20. Pelo sim, pelo não, aqui fica para o nosso maestro um valor seguro da sociedade de consumo: a infalível laca Elnett Satin, da parisiense L’OREAL.

sábado, 20 de dezembro de 2008

O PONZI DA RUA DO MURO




O esquema era clássico: ou se roubava a fortuna da avó velhinha ou se enganava o patrão. Quando davam por eles, já os espertalhões estavam no Rio de Janeiro, a gozarem a reforma antecipada. Até chegar Charles Ponzi, aliás Charles Ponei, aliás Charles Bianchi, aliás Carlo Ponzi, aliás Carl Ponzi. Foi ele (foto da esquerda, em 1920), o inventor do esquema da pirâmide. Muitos se lhe seguiram, uns menos cotados e mais povo, como a D. Branca, outros mais chiques e upper class, como Pedro Caldeira, o Ponzi da Gandarinha. Acabou tudo mal. Sempre.

Ponzi, o verdadeiro, morreu no Rio de Janeiro, em 1949, aos 66 anos. Mas, hélas, morreu pobre.

Chegou agora a vez de um esquema de rebaldaria de dimensões galácticas fazer a sua aparição na conhecida Rua do Muro. O novo Ponzi chama-se Bernard Madoff e tem 70 anos. À conta de sua pirâmide, de fazer inveja a qualquer Ramsés que se preze, lá voaram 50.000.000.000 de dólares.

Gostava, nestas alturas, de dar uma volta pela imprensa de há uns anos, para ter o prazer de reler aquelas extensas reportagens que teciam loas a Madoff, à economia da Islândia, ao dinamismo dos empreendedores etc. etc.

A parte menos engraçada é que paga estas brincadeiras caras somos nós, os que nem sabem o que é que "investimento", "produtos de risco" ou "mercados financeiros" querem dizer.

Mal por mal, prefiro os pilha-galinhas que, quais Robin dos Rosques, fugiam para os trópicos com a massa dos patrões para, suponho, irem viver uma existência de jogo, boémia e luxúria.

ENRIQUE PONCE A NOBEL DA LITERATURA



CADA MOVIMENTO NA ARENA É UM POEMA ENORME.

¡Toro!

Uns segundos antes ainda se ouviam alguns sons na praça. Mas naquele momento já não. “¡Mira toro!”, desafiou Enrique Ponce, de frente, imóvel e ousado, destemido mas calmo. Assim, numa voz firme, mas não muito alta, no meio daquele silêncio de religião da praça. “¡Mira toro!”, antes do bicho arrancar, nem muito devagar nem muito depressa. Quase parado, quase em câmara lenta, Enrique deixou o touro passar, num movimento vagaroso, numa verónica elegante. “¡Mira toro!” e naquela voz da tarde de Verão resumem-se milhares de outras vozes e milhares de outras arenas. Debaixo da capote de Enrique passaram, em poucos minutos, a lenda do minotauro, as feras dos circos romanos e a vaca que matou um califa, numa noite cálida de Marrakech. O touro de que Enrique agora se esquiva já foi mil vezes retratado. É ele que está pintado nos vasos áticos, é ele que, desde há milhares de anos, dá colorido aos frescos das paredes e aos mosaicos dos chãos. Já se chamou Pocapena, Islero, Avispado. Foi ele quem matou de morte horrível Manuel Granero e El Yiyo, no dia em que, também eles, invocaram “¡mira toro!”,. Foi ele quem aniquilou a arte de Joselito e a de Manolete. Foi ele quem inspirou as mais trágicas páginas de García Lorca.

Já passa das cinco da tarde e nos minutos que se seguiram ninguém respirou na praça, juro que não, enquanto se ouvia o respirar da fera, o bailado de Enrique, sempre à beira do triunfo, sempre a um passo da tragédia. “¡Mira toro!”, dissera ele, não muito alto, o suficiente para que o touro arrancasse, passando primeiro à direita, depois à esquerda. Às vezes achamos que podemos pedir mais, talvez ainda um pouco mais de risco, talvez mais uma centelha de temeridade, mas isso não é para todos os dias nem para qualquer sítio.

O tempo parou. Quem vencerá a batalha? Enrique ou a besta?

“¡Mira toro!”, que a lide acabou, o touro já amansado, vencido para sempre. É a hora do triunfo, lenços brancos, uma orelha, talvez duas. O ar contido nos pulmões sai de uma vez e a tensão voou com a alma da fera. Enrique dá uma volta à praça. O homem que agora sorri e bebe o vinho que alguém lhe atira dos tendidos não é o gladiador de há pouco. Estranhamente, a vitória sobre o touro transformou o semi-deus num actor amado. Neste momento, Enrique Ponce é apenas isso. O actor sai. Cai o pano. Está sol sobre a Andaluzia.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

POESIA, VINHO E VIDA CORTESÃ




De vez em quando, e cada vez com mais frequência, lá vem a história da proibição do consumo de vinho no mundo muçulmano. Para pôr um pouco de peso no outro prato da balança aqui vai uma imagem do "Qissat Bayad wa Riyad", uma história de amor de finais do século XII/inícios do século XIII. A cena sugere vagamente uma qualquer vernissage, mas é na realidade uma situação habitual na vida da corte. O manuscrito está na Biblioteca do Vaticano.

E aqui fica, em versão castelhana, um poema célebre onde o vinho é evocado ("Sine Cerere et Baccho friget Venus", diziam no mundo clássico). "La hermosa en la orgía" foi escrito há cerca de mil anos.



Su talle flexible era una rama que se balanceaba sobre el montón de arena de su cadera y de la que cogía mi corazón frutos de fuego.

Los rubios cabellos que asomaban por sus sienes dibujaban un lam en la blanca página de su mejilla, como oro que corre sobre plata.

Estaba en el apogeo de su belleza, como la rama cuando se viste de hojas.

El vaso lleno de rojo néctar era, entre sus dedos blancos, como un crepúsculo que amaneció encima de una aurora.

Salía el sol del vino, y era su boca el poniente, y el oriente la mano del copero, que al escanciar pronunciaba fórmulas corteses.

Y, al ponerse en el delicioso ocaso de sus labios, dejaba el crepúsculo en su mejilla.

O autor foi o príncipe omeia MARWAN BEN ABD AL-RAHMAN, chamado AL-TALIQ (falecido em 1009)

SAPATOS VERMELHOS






Para encerrar o tema dos sapatos, aqui ficam duas imagens curiosas: à esquerda, um mosaico da basílica de S. Vitale em Ravenna (a figura central é o imperador Justiniano, reconhecível, entre outros atributos, pelo calçado vermelho); à direita, está o Papa, reconhecível, entre outros atributos, pelo calçado vermelho. Os símbolos têm vidas longuíssimas...

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

BEIJOS DE DESPEDIDA

Os sapatos enquanto auxiliar do discurso político e estético - Kruschev dialogando com a ajuda de um sapato.


O célebre Maxwell Smart conspirando com a ajuda do seu sapatofone.


Aula de filosofia pelo Prof. Doutor A. Schwarzenegger, com a ajuda de um sapatocompêndio.


Karl Lagerfeld com o sapatopistola.


Muntadar al-Zaidi falhando os dois beijos de despedida que quis dar a George W. Bush.


Uma armaria algures no Alentejo


O novo paiol de munições de Bagdade

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

NO MEIO DA CLAQUE



Foi no fim de Inverno de 2005. O meu tempo na Universidade de Lyon aproximava-se depressa do fim. O Professor Guichard marcara-me um último encontro para a tarde dessa terça-feira, dia 8 de Março. A conversa foi breve, concluída com um imperativo “isto está feito, você entrega a tese em meados de Maio e marca-se já a defesa. Le 10 juin, ça vous va?”. Achei graça à coincidência e disse-lhe que sim, que remédio tinha eu. Conversa acabada e “à demain”.

O resto do dia não prometia nada de bom. Sozinho em Lyon, um frio de rachar, o vento dos Alpes a gelar as margens do Ródano, as horas a rolarem mais devagar que um caracol. E eis que dou comigo, chateadíssimo, sentado à janela de um bar da Place Carnot, uma garrafa de Cotes du Rhône já lá vai, não tarda outra vem a caminho. Eis que passa uma turba alemã aos urros, bandeiras verdes e brancas. Olá, que é isto? Os oitavos de final da Liga dos Campeões: Lyon-Werder Bremen, esclarece, diligente, o empregado. Decisão rápida, vou à bola. Saio porta fora a caminho do estádio. Aí chegado, cometo dois erros trágicos: peço o bilhete em francês, sem sotaque alemão, e compro uma entrada das mais baratinhas. E assim dou comigo, cinco minutos depois, no meio dos Juve Lyon ou dos Diabos Vermelhos de Lyon. Eram todos loucos furiosos. Berravam como possessos, vá lá saber-se porquê, e saltavam ritmadamente e cantavam e, meu Deus, ainda faltava meia-hora para o jogo começar. Organizadinhos, dão-me um papelinho com as palavras de ordem do dia e outro papelinho colorido para agitar à entrada da equipa. Passam-me pela cabeça ideias angustiosas: eu nem o nome do treinador sabia e conhecia vagamente o nome de dois ou três jogadores. Alguém me faz uma pergunta sobre quem ia jogar à direita e já não tive tempo de responder porque a equipa entrou em campo e durante quase duas horas a malta à minha volta gritou desesperadamente. E eu com eles, porque quem não mija em companhia ou é espião ou é ladrão. À meia-hora o Olympique Lyonnais já ganhava 3-0. Do mal o menos, o povo estava feliz. Braços ao ar, primeiro, a ola à mexicana, depois, mais palavras de ordem, logo a seguir. Mais um par de golos e a conta já vai em 5-2. Juninho, JU-NI-NHÔ, gritavam os franceses, mas “putain, bordel”, o raio do brasileiro não há meio de marcar. Marcam Wiltord e, no fim, Berthod. 7-2! uma sova de todo o tamanho nos boches. No meio da claque trocam-se sinais cúmplices. Um grandalhão dá-me uma palmada nas costas, “c’est fait mon ami” berrava o gajo, e eu fingia um sinceríssimo contentamento.

Voltei, feliz e exausto, ao hotel. No dia seguinte, um desconfiado e divertido Prof. Guichard ouviu a narrativa da incursão no Stade de Gerland. À hora de almoço fui olhado pelos colegas do departamento com curiosidade zoológica. Percebi depois que ir ao futebol no meio da claque não faz parte do cardápio académico francês. A minha carreira universitária não seria, contudo, prejudicada pela façanha.

O Lyon baqueou nos quartos-de-final às mãos do PSV. O Liverpool viria a sagrar-se campeão europeu nesse ano.
O Lyon baqueou nos quartos-de-final às mãos do PSV. O Liverpool viria a sagrar-se campeão europ
(a fotografia é da claque do Fluminense, no Maracanã, mas para o caso é igual).

ANTES DE MAIS, NADA DE DESPORTO!

Quando um dia perguntaram ao estadista britânico Winston Churchill qual a razão da sua persistente boa forma respondeu, imagino que entre duas baforadas de charuto, “first of all, no sports!” (antes de mais, nada de desporto).

A minha relação com o desporto foi sempre difícil. Na verdade, gosto da actividade desportiva, se considerarmos como tal gostar de ver as moças da natação sincronizada ou as velocistas jamaicanas. Ou assistir ao futebol com os amigos numa esplanada ou no estádio.

Limitações de ordem física impediram-me sempre de ir mais além. A falta de vontade em um dia vir a ser campeão olímpico também ajudou um pouco. O João bem que tentou, numa longa saga. Primeiro a ginástica, no Grupo Desportivo de Queluz. Ao fim de seis meses e de quase provocar um colapso nervoso no prof (nunca consegui fazer o pino) achei que a ginástica não era para mim. Depois o basket, porque foram buscar os mais altos ao liceu e assim tive a oportunidade de vislumbrar uma gloriosa carreira no banco. Durou uma semana. Depois veio o atletismo. O João ia beber uns copos de vez em quando a um café de um senhor de Pias, cujo filho, António Cachola, era campeão nacional de velocidade. Vai daí teve a triste ideia de dizer ao João “porque é que não leva o rapaz lá ao Benfica?”. A ideia pareceu-me péssima mas o João achou-a óptima. Dois dias depois estava às voltas ao Estádio da Luz. A mesma cena. Voltas e mais voltas, chuva e um frio de rachar. Durou duas semanas. Quarta tentativa, a natação. Agora é que é. No Benfica outra vez. Aulas de aprendizagem, onde se faz a primeira escolha dos que um dia irão nadar à séria. O mestre era nem mais nem menos que o célebre Shintaro Yokochi. Não foi completamente mau, embora hoje tenha remorsos do trabalho que dei ao prof. Yokochi, um caso raro de dedicação, uma vez que ele próprio ensinava à miudagem as técnicas e os truques das técnicas. Como me safei? Em bruços era assim-assim, no crawl fracote, em costas um pouco pior. O drama foi na mariposa. Nunca dominei a técnica, que não é fácil, e não conseguia bater as pernas ao mesmo tempo que os braços. Ou uma coisa ou outra, o que me fazia avançar os solavancos. Parecia que tinha soluços debaixo de água, o que desesperava o treinador e os adjuntos. Fui piedosamente remetido para as classes de manutenção, onde convivia com outros adolescentes borbulhentos e desajeitados como eu, com velhotes com asma e com senhoras solitárias. Capítulo final: o remo. Mais dificuldades. Os barcos eram velhos e pesados, o rio Tejo sujíssimo e os treinos monótonos, para trás e para a frente como os cacilheiros, só que muito mais devagar. Foi coisa para uns dois meses.

Desisti de vez. Claro está que, com o passar dos anos, começamos a ter preocupações, aquelas que antes não tínhamos, com a saúde. E quando um dia fui fazer um electro-cardiograma, e me assustei um pouco com tantos fios e tantos monitores porque nunca tinha feito nada daquilo, só descansei no momento em que a Elsa exclamou “ena! 61 pulsações! Como é que é isto?”. Antes que alguém pensasse que o aparelho podia estar avariado, senti-me vingado e quase pronto para a maratona olímpica. Pude então revelar o segredo: um cognac Martell com regularidade a seguir ao jantar e, sobretudo, nada de desporto.

BAMACO


DIMANCHE À BAMAKO

É assim que se chama o disco, Dimanche à Bamako. E nós ficamos a imaginar como será o dimanche à Bamako. Haverá acácias e belas mulheres à sua sombra, nos domingos de Bamako? As águas do Níger trarão frescura aos domingos de Bamako? Correrá um pouco do harmattan, o terrível vento do deserto, nas ruas dos domingos de Bamako? Soprará esse vento sobre as águas do Níger, por entre as acácias e as belas mulheres? Que oásis haverá?

Há poucos oásis em Bamako. A planta da cidade vista só em planta é um enredo de ruas direitas e há até guias que falam nas árvores dos bairros de Sogoniko ou de Badalabougou. Foi talvez assim um dia, e agora temos pena de não termos conhecido esses dias e esses domingos de Bamako. Agora os dias são de caos, há fumo, meu Deus, há fumo e mais fumo. A cidade vive envolta em fumo. Dos carros com carburadores asmáticos, do lixo a arder ao lado dos hotéis e dos campos de golfe, do lume dos restaurantes, digamos que são restaurantes, que aparecem por toda a parte. Afinal o vento não sopra em Bamako e por isso o fumo não viaja, ficando a pairar sobre a cidade. A cidade colonial é uma miragem curta nesta parte do Sudão e as glórias passadas fenecem por entre destroços.

Nos dias que não são dimanche há mais trânsito e nota-se muito mais o fumo. Há mais carros, mais motoretas e maquinetas. Nesses dias um milhão de pessoas cruza o gigantesco bairro da lata que Bamako é, e nós ficamos sem perceber nada. De que vivem todas aquelas pessoas? De que vivem os vendedores se não há ninguém para comprar ou, pelo menos, ninguém parece comprar coisa alguma? Quando é dimanche à Bamako respira-se um pouco melhor, sem o travo do gasóleo a arder nas narinas e na garganta. Quando é dimanche podemos fugir mais ao fumo.

Aos domingos podemos esgueirar-nos um pouco mais à vontade, por entre as latas das barracas, por entre os montes de lixo semeados à toa. Para quem gosta dos mercados, há o novo mercado, nos guias lê-se que é novo mas parece já ter nascido com muitos anos. Mais longe, na margem do Níger, uma sugestão de jardim dá um pouco de placidez aos domingos de Bamako.

Há uns séculos atrás ninguém passeava ao longo do Níger nas tardes de domingo porque a cidade ainda não existia. Nesses dias havia pirogas que passavam por entre as ilhotas onde agora os poucos pássaros vão pousar. Mas as pirogas partiram e o rio é agora um deserto de água. Nesses dias lá longe os caminhos do Níger levavam para Tombouctu e para Gao. É para aí que iremos um dia, porque lá onde estão não há fumo, de certeza que não, nem um milhão de pessoas amontoadas, como nesta aldeia de homens e mulheres gentis.

Agora é Inverno em Bamako, aceitemos que 35º possam ser Inverno, e por isso o tempo é muito seco. O calor ainda vem longe e mais longe ainda está a chuva. Tenho dificuldade em imaginar como serão esses domingos de Verão, com a chuva que não pára, o calor terrível, o fumo dos carburadores asmáticos e a maior parte das ruas a serem pasto da lama e dos mosquitos.

Na próxima vez vou chegar a um domingo. Vai ser num dos beaux dimanches cantados por Amadou e Mariam. Nesse domingo haverá, decerto, menos fumo e menos gente perdida a deambular pelas ruas. Haverá, decerto, belas mulheres cujas pulseiras rivalizam, por entre as acácias, com a curva da corrente do Níger.

SÍRIA



Na rua que conduz a Bab Sharqi, em Damasco, conserva-se parte de um arco de triunfo romano. Só o arco nos faz recuar aos dias em que S. Paulo viveu naquela rua. O resto há muito deixou de existir e a procura de uma cidade desaparecida torna-se um jogo de imaginação. Talvez Paulo de Tarso passasse todos os dias debaixo do arco de triunfo romano, sobre o qual se passeia agora um gato de ar preguiçoso. Mas aquele monumento é apenas um testemunho raro de uma época esquecida e a História deixa-nos sem respostas na esquina da rua, a que leva a Bab Sharqi, e que está deserta no fim da tarde de sexta-feira.

Dos dias da Damasco romana ficaram alguns monumentos, menos à vista do que poderíamos esperar. As cidades que se lhe seguiram foram ocultando as anteriores e os roteiros turísticos que os poucos visitantes cumprem, religiosamente, guiam-se, quase só, pela cidade dos últimos 300 anos. Mas a geografia de uma cidade não é um mapa para turistas e a topografia dos sítios não se segue, encontra-se. Uma rua à direita, duas à esquerda, ao acaso e à toa, à procura de respostas.

As ruas de uma cidade são terra firme. Dá prazer deixarmo-nos levar, uma rua à direita, duas à esquerda, sempre ao acaso. Não nos perdemos, porque as trepadeiras das ruas de Damasco, a cruzarem-se nas pérgolas à nossa frente, já um dia as vimos, mas não sabemos onde. Talvez num sítio longe de Damasco. São talvez ruas sonhadas ou já vistas.

Muito do passado de Damasco está hoje escondido em bairros recônditos ou quase desapareceu. As cidades não são uma realidade imóvel e imutável. Menos ainda quando falamos de sítios como este, ocupados há milénios e abalados de tempos a tempos por convulsões, pelas dos homens e pelas que surgem das entranhas da terra. O correr dos anos, o simples martelar do sol e da chuva se encarregaram de fazer o resto. É por isso que a topografia antiga de Damasco há muito se modificou e da cidade onde viveu São Paulo só restam o arco romano na rua que vai para Bab Sharqi, a entrada oriental da cidade, a colunata à saída do souk Hamidieh e algumas das paredes da grande mesquita dos omeias.

É na mudez das pedras que está a resposta a tantas questões. São elas que nos contam o que os textos escritos tantas vezes omitem, por desconhecimento, por convicção ou por conveniência. Entre Bosra e Qalb Lozeh, desde a desolação da estepe de Qasr ibn Wardan até ao oásis de Palmyra é sempre nas pedras onde a História foi gravada que procuramos os relatos do passado. William Henry Waddington escrevia, no final do século XIX, que a causa da destruição dos monumentos antigos da Síria se devia aos muçulmanos e aos cristãos, que tinham usado os edifícios mais antigos como matéria-prima para erguer novas construções. Explicação simplista mas, em grande parte, certeira. Assim se destruiu e se refez, em cada dia, o percurso da História.

A Síria Antiga guarda-se nos museus de Damasco e de Alepo. E nos das antigas capitais coloniais do Ocidente, que pilharam, com método e eficácia, um solo inesgotável. Os mosaicos e algumas das colunas de Apameia estão hoje no Museu de Bruxelas. A maior parte da colunata está no local de origem, ao longo da grande avenida que atravessa a cidade. Ao cruzarmos o Orontes e ao chegarmos às ruínas de Apameia esperam-nos dois quilómetros de avenida deserta, guardada por gigantes de sete metros de altura, perfilados no centro de uma cidade com 255 hectares. A desolação e o silêncio de Apameia tornam-se mais evidentes no fim da tarde, quando a luz se começa a desvanecer e quando tentamos imaginar e refazer a cidade que outrora ocupou aquele planalto e da qual não restam mais que as colunas e o espólio que os ocidentais pilharam.

O coração da Síria Antiga está em Palmyra. A saga de Palmyra é notável, e inclui um desafio a Roma e uma independência ganha por pouco tempo. Roma ficava muito longe e a cidade, no meio do seu oásis, a meio caminho entre o Eufrates e o Mediterrâneo, não resistiu à tentação da liberdade. Quatro anos durou a aventura (268-272), tempo curto mas que chegou para imortalizar a cidade e Zenobia, a sua rainha. Os idiomas oficiais em Palmyra eram o grego e o aramaico. O grego ficou nas pedras e já só interessa aos epigrafistas, aquelas pessoas que transformam a história de outras pessoas em traços e símbolos e em fórmulas de gramática. O aramaico cruzou milhares de anos, tornou-se numa ilha de sons que muito poucos entendem e já só é falado em duas ou três aldeias das montanhas do Kalaamoun.

Palmyra é um mostruário de arquitraves, de fustes, de capitéis, de recordações de uma cidade perdida. Chega-se ao oásis de Palmyra depois de cruzar o deserto da Síria, entra-se na cidade pelo ocidente, pela zona onde está o vale dos túmulos. Para lá das ruínas e da cidade nova fica a frescura do oásis. As azinhagas que o cruzam estão, contudo, tão abandonadas como a alameda de Apameia. As hortas, que podiam ilustrar algum relato bíblico ou das Mil e Uma Noites, já pouco produzem, e o rumor da gente que outrora se ouvia pelos vergéis deu lugar ao som dos passos de alguns viajantes mais curiosos. São eles quem franqueia os campos de cultivo, por entre muros que não voltarão a ser reparados e no meio de um silêncio terrível, já só quebrado pelo som dos passos dos que percorrem o oásis à sombra das palmeiras.

O coração de uma Síria intemporal vive em Alepo. Cerca de mil metros separam Bab Antakyah e a cidadela. Em mil metros mergulhamos na máquina do tempo, num souk que saiu das páginas de um texto antigo. O barulho, os pregões, a venda de tecidos repetem-se sem cessar há muitos anos e já um dia ouvimos as vozes dos vendedores do souk de Alepo mas não sabemos onde. Os vendedores, que repartem o espaço com um rigor de geometra, têm centenas de anos. O tempo não passou por eles porque estão resguardados do sol e da luz do dia pela penumbra do souk. O que se vende é tão antigo como o souk, como os sabões de azeite e palma que fizeram a fama de Alepo.

Para lá dos mercados, para além dos monumentos e da História Antiga começa a outra Síria. Aceitemos a hospitalidade do Oriente enquanto o turismo não chega. Aceitemos o chá que nos oferece Muhammad Kadr al-Kadr, o guarda do forte bizantino de Qasr ibn Wardan. Entremos na casa de Brahim Abu Radwan, na aldeia de as-Srouje. Sentemo-nos na sua casa e ouçamo-lo contar a história da sua vida, os anos duros da emigração no Dubai, o regresso à aldeia, a compra de 50 ovelhas e de umas oliveiras. Partilhemos uma refeição de pão e azeite com a família de Lufte Naasif, na aldeia druza de Qalb Lozeh. É uma conversa feliz, feita de muitos silêncios, que se prolonga durante duas horas e poucas vezes, como dessa vez no norte da Síria, estive tão perto de casa. Aceitemos as duas romãs que um rapazito nos oferece à entrada do sítio de Aïn Dara enquanto nos diz “sou curdo”, a vida, o orgulho e o passado de cada comunidade a fazerem-se sentir em cada esquina. Acompanhemos Margarita Curché pelas ruas do bairro cristão de Damasco, por entre as igrejas e as mesquitas que partilham as mesmas ruas, por vezes muito perto, por vezes mesmo lado a lado. Não nos espantemos quando ela cerrar o punho em desafio e clamar em voz alta “aqui somos todos cristãos!”. Margarita refere-se ao bairro, mas o seu bairro é o seu mundo, um mundo que fica junto a Bab Touma, no extremo nordeste da cidade antiga.

Em tempos que já lá vão, a rota de ouro do comércio mediterrânico começava em Sevilha, tocava os portos da Tunísia e ia terminar lá longe, em Alexandria ou em Antioquia. Era um percurso que todos os mercadores conheciam e que várias vezes ao longo do ano tinham que percorrer. À Península Ibérica vinham buscar a prata que faltava a Oriente. Para a Península Ibérica traziam os tecidos e os perfumes que iriam tocar o corpo das andaluzas mais belas. Ou das mais ricas.
Lá longe, para lá de Antioquia, existe ainda ainda um pouco desse mundo. Fica fora das fronteiras da Europa, cada vez mais longe do Ocidente. Às portas do Levante, o ar do Mediterrâneo começa a dar lugar à aridez do deserto. É aí que começa a Síria, onde o Mediterrâneo acaba e até onde chegam as oliveiras. A algumas jornadas do mar fica o oásis de Palmyra e, mais para leste, a imensidão da Mesopotâmia.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

um blogue a partir de Moura

Imagens e textos sobre o Sul.

A maior parte dos textos serão republicados a partir do jornal "A Planície".