Penúltimo texto da irregularíssima série sobre os continentes, agora com a Ásia. Estive três vezes na Ásia, mas não naquela em que, normalmente, pensamos. A Turquia, a Síria e a Jordânia "não contam"...
É à outra Ásia que gostaria de ir um dia. Mas é cada vez menos provável que tal aconteça. O azul irreal da estampa simboliza essa impossibilidade. Wenceslau de Moraes (1854-1929) partiu para o Extremo Oriente, mas não regressou. Fixou-se no Japão em 1898, aí tendo vivido os últimos 31 anos da sua vida. Um bom poeta, hoje meio esquecido. Um homem livre e sem amarras.
Aqui
Aqui, entre os juncos e as flores do lótus,
compreendi que o inferno e o céu,
por mais que os deuses e os livros nos levem
a pensar o contrário, estão no coração do homem.
Eu conheci ambos deambulando por dentro de mim
e fazendo da sombra um desejo de luz
e da luz um secreto desejo de sombra.
Não foi o sol que me queimou o rosto,
foi o lume das inquietações fatais,
e quedei-me assim, apátrida e só,
numa terra a que chamo minha
mas que faz o longe tornar-se fatalidade.
Apego-me à sabedoria volátil e certa dos provérbios
e aprendo neles que sou, que sempre fui,
um insecto do estio a voar para a chama
e que após a neve vem o Nirvana.
Sempre encaminhei os meus passos na direcção da luz,
mas foi a treva que encontrei, fixando os pedaços
de reboco que se soltam do tecto
presos ao voo dos besouros, enquanto
eu me perco no labirinto da minha solidão.
Vê como eu morro devagar
enquanto a chuva desenha na poeira
as metáforas do Outono e do assombro.
Vê como eu apodreço à ilharga da música
que sai do interior das conchas
junto à rebentação das ondas,
no sítio onde os poetas há muito
deixaram de escrever e de sonhar.
Vê como eu me torno estrangeiro absoluto
numa terra que quer ser minha
mas que eu não consigo guardar no coração
como coisa essencial da minha vida.
Wenceslau de Moraes in "O Profeta do Orvalho"