segunda-feira, 15 de junho de 2015

CAMARATE

A primeira indicação foi quase misteriosa, “para fazeres as impressões em suporte digital vais à AGIR”, determinou o Luís. AGIR só me fazia lembrar um daqueles grupúsculos de intervenção política que enxameiam, como se fossem muito relevantes, as páginas dos jornais. Não, não é nada disso e fica em Camarate, clarificou o Luís. Camarate é um sítio mítico da política portuguesa, mas eu nunca tinha ido a Camarate. A indicação da morada da empresa não era evidente. Uma Rua Particular, na Quinta das Rosas, e eu não fazia a mínima ideia de como lá chegar. Rua Particular parece coisa improvável, mas é mesmo assim. Imaginei-me a entrar num táxi e o taxista a virar-se para trás, de ar furibundo, a perguntar “e essa merda fica onde?”. Já me aconteceu e não me apetecia repetir.

Aí vou, eixo norte-sul fora. Há uma rotunda, outra rotunda, é sempre na primeira à direita e passo por um palacete do século XIX. É um daqueles que encontramos nas obras de Eça de Queirós, mas já não encontramos púdicas donzelas, nem impúdicas miss Sarah. Quase todas as casas senhoriais faliram, passaram a turismos de habitação ou se “equipamentarizaram”: lares, bibliotecas, museus...

A partir daí, é outra Camarate que emerge. A clandestinização do espaço é geral. A balbúrdia urbana também. Resolvo não usar o google mas só para ver o que acontece. Há ruas progressistas – Ramiro Correia, Adriano Correia de Oliveira... – e outras colonialistas – Heróis de Mucaba, Santo António do Zaire, Heróis dos Dembos... – , que entrocam em vias ora enigmáticas (Rua Projetada A), ora bucólicas (Rua das Oliveiras). Umas acabam nas outras, em harmonia. Ninguém se incomoda. Somos assim. Complacentes e distraídos.

Foi assim que desemboquei no “Sousa dos Radiadores”. Ali perto, um senhor, de ar vínico e rotudamente aposentado, nunca ouvira falar da AGIR. Como seria de imaginar. Desisto da navegação à vista e invoco São Google. Estava, afinal, muito perto. Retomo o caminho, por ruas de prédios escalavrados. Há velhas marquises de alumínio, à mistura com jardins de infância de nomes imaginativos. Vivendas dos anos 50, blocos de habitação e armazéns acotovelam-se, numa lógica obscura. Há cores e sons em desarmonia, por toda a parte.

Estaciono, numa rua deserta e onde só há armazéns. O ambiente é de série policial americana. Não se vê vivalma e os portões estão fechados. Alguém me acena, à distância. Chegara à AGIR. Recolho as impressões e saio, em direção à auto-estrada... Deixo para trás a improvisação de Camarate, as marquises, a parafernália de cores, os armazéns metidos em casas e as oficinas de nome tipicamente lusitano. À medida que me afasto, ganho uma certeza: só em Portugal um sítio como Camarate é possível. A inversa é, também, verdadeira. Pela simples razão que Camarate é um espelho de Portugal. E não é de agora. É-o de há muitos anos.


Crónica publicada hoje, em "A Planície".

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