Texto lido hoje, durante a cerimónia na Ribeira da Perna Seca:
Poucas coisas ao longo da vida,
muito poucas seguramente, me deixaram marcas tão fundas e tão inapagáveis como
este processo da Ribeira da Perna Seca.
Um dos momentos mais marcantes
ocorreu na noite de 29 de dezembro de 2009. A ribeira transbordara, uma vez
mais. O acesso principal à aldeia estava cortado e tivémos de entrar, o José
Maria e eu, pela Estrada dos Carapinhais, num percurso mais longo, por entre a
escuridão e a chuva que ainda caía. Preparávamo-nos para ouvir um coro de
reclamações, à chegada. O que aconteceu foi, para nós, muito pior. Havia um
terrível silêncio, um misto de desalento e de tristeza se apossara dos
moradores que vivem aqui nesta zona. Ouvia-se apenas aquele rumor da água a
correr depressa, quando a ribeira começava a esvaziar lentamente.
Senti, nesse momento, vergonha. Senti,
enquanto cidadão português, uma profunda vergonha. Tinha vergonha da nossa
falta da capacidade financeira, só ultrapassada com um empréstimo
bancário. Tive vergonha dos governos que
fomos tendo, dos seus boys, dos seus bajuladores e puxa-saquistas. Quase
tive pena de vários dos meus interlocutores, não pela recusa em colaborar ou em
financiar (que aconteceu), mas pelo seu distanciamento e pela sua indiferença.
Percebi o sentido da palavra "abandono".
Percebi, em muitas ocasiões, a quem estamos entregues e a forma como o interior
é deixado à sua sorte, por governos de gente muitas vezes indiferente e muitas
vezes pouco capaz.
Uma pessoa com responsabilidades políticas locais [aqui
do Sobral] dizia, em outubro de 2009, "… eu considero que a Câmara, por si
só, não tem capacidade financeira para realizar a obra, mas tem de interceder
junto de outras entidades…". A declaração inscreve-se na lusitaníssima
lógica do "interceder", do "requerer", do "pedir"
ou do "pedinchar" junto dos poderosos
(que tem no " ó sôtor faça lá um jeitinho" a sua expressão
máxima). Nem nós nem os sobralenses temos de interceder coisa nenhuma. Temos
direitos, que não foram respeitados. Precisámos de solidariedade e responderam-nos
com legislação e com burocracia.
Dobrada a casa dos 50 anos olha-se o
mundo, pela primeira vez, de forma diferente. Uma passagem de “Memórias de
Adriano”, de Marguerite Yourcenar, lido na juventude, faz sentido pela primeira
vez: “assim como o viajante que navega entre as ilhas do
Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e
descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha
morte”. Deitamos contas ao tempo que passou e temos a certeza de estarmos a
mais de metade do caminho. Impercetivelmente, passámos essa metade sem nos
darmos conta. Foi tudo demasiado rápido e o tempo é, ele mesmo, agora mais
rápido.
Olhando a minha linha da costa, penso
muitas vezes na importância do dia de hoje e na importância desta obra e do contributo
que, no meio de tantos, pude dar. O dia de hoje é um dos dias
mais compensadores da minha vida. E esta é a obra mais compensadora, do ponto
de vista pessoal, em que pude participar enquanto autarca.
Percebemos, em final de 2009, que não era possível
avançarmos para a intervenção faseada que tinhamos preconizado. O resto da
história é um conjunto de datas e de números, de nomes de empresas, que aqui
pouco nos interessam.
Tenho orgulho no dia de hoje. Pela obra, de certeza
que sim. Mas tenho orgulho sobretudo pela capacidade de resistência dos
sobralenses. Pela amizade que tantos dos que aqui estão fizeram o favor de me
oferecer, ao longo dos anos. Quem vive aqui, quem aqui resiste, merece todo o
esforço de que formos capazes. Merece, sobretudo, o nosso respeito.
Vivemos, aqui no interior, num país fantasma. Temos
hoje caminhos abandonados, pontes
esquecidas, aldeias semi-despovoadas e um território que, aos poucos, morre às
mãos da indiferença do outro Portugal, o do litoral, onde há uma realidade que
nos parece, muitas vezes, coisas de ficção.
Nesse país fantasma
viveram e resistiram, durante centenas de anos, centenas de gerações. As dos
nossos antepassados. Artesãos, agricultores, professores, sapateiros, pastores,
tecedeiras, perde-se o conto ao número e ao nome dos que por nada trocariam os
horizontes do seu território por qualquer outro sítio do mundo. Nunca ninguém
lhes perguntou quanto queriam por ficar nem quanto valia o seu amor à terra que
os vira nascer. Muitos partiram, por não terem meios de subsistência.
Como diz a moda, nós
somos devedores à terra. Assumamos essas palavras em sentido global. Somos
devedores às nossas aldeias. Somos devedores aos que construíram este concelho.
Somos devedores aos que trabalharam e trabalham os campos. Paguemos-lhes todos
os dias. Mantendo as escolas, tentando reparar caminhos, comprando maquinaria e
pondo-a ao serviço dos munícipes, investindo e fazendo obras.
A obra que hoje se
dá por concluída resume tudo isto. Foi uma obra feita com firmeza, com
determinação e contando convosco. Fizémos questão de assinalar o dia de hoje,
porque essa é uma obrigação que temos para convosco. A política é isto, de uma
forma muito simples. Estar próximo, ultrapassar dificuldades e avançar.
Recordo uma parte do que disse na tomada de posse, em 20 de outubro de 2013.
Durante a II Guerra Mundial, quando o esforço militar
consumia todos os recursos das ilhas britânicas, foi sugerido ao
primeiro-ministro Winston Churchill que cortasse nas verbas da cultura. O homem
que conduziu a Inglaterra à vitória sobre a Alemanha recusou perentoriamente.
“Se cortamos na cultura, estamos a fazer esta guerra para quê?”. (fim de
citação)
É esse um dos tópicos do nosso combate quotidiano. E se nos
referimos à cultura, não é à sua vertente literária e artística, apenas. Mas à
necessidade de termos uma perspetiva cultural do nosso concelho e do mundo à
nossa volta.
É essa perspetiva cultural que nos leva a reabilitar as
nossas localidades. É por termos essa certeza que cedemos o terreno e
colaborámos no financiamento da Escola Básica Integrada de Amareleja. É por
termos essa convicção que interviémos nas escolas e as melhorámos. Foi assim em
Santo Amador e em Santo Aleixo. É esse enquadramento cultural que nos leva a
renovar redes de águas e a fazer obras como a da Ribeira da Perna Seca, no
Sobral da Adiça. Sem gente não há futuro e sem condições para aqui vivermos não
há gente. A equação é simples. Tão simples como simples e direta é a nossa
determinação. Que é tão firme como a vossa determinação.
De uma coisa tenho hoje
a certeza. As soluções e a força estão em nós. Em todos nós. Não há salvadores
da pátria, nem profetas nem homens ou mulheres providenciais. Estamos todos
nós, com o nosso empenho, o nosso sentido de luta e a nossa capacidade de
concretização. Estamos nós e, como diz um velho amigo meu, a “infinita liberdade
do espírito”. É a essa a minha firme convicção.
Obrigado, sobralenses!
O triunfo da cor e a placidez do tema estão bem de acordo com o início da tarde de hoje. Régate à Argenteuil está no Musée d'Orsay, em Paris. Foi pintada em 1872 por um muito jovem Claude Monet (1840-1926). E a cor e a placidez sobralenses vão a par do poema, de 1921, de Paul Éluard (1895-1952). Mesmo sem regatas, estava assim a ribeira, azul e luminosa.
La rivière
La rivière que j'ai sous la langue,
L'eau qu'on n'imagine pas, mon petit bateau,
Et, les rideaux baissés, parlons.
Um discurso emocionante dito por um presidente emocionado, Dr.Santiago Macias, na inauguração das obras e arranjo paisagístico da Ribeira da Perna Seca, que efectivamente não tem pernas e seca também não é porque quando chove alaga(alagava) tudo.À parte a brincadeira,foi uma obra importante, necessária e fundamental para o bem estar de muitos Sobralenses.
ResponderEliminarE como queremos sempre mais e melhor ficamos a aguardar próximas inaugurações de obras começadas e ainda não acabadas e também muito úteis para o bem estar do povo da nossa aldeia.
Obrigada Santiago, pela obra e pelas palavras sábias que deixaste ontem no Sobral.
ResponderEliminarO meu pai foi um dos resistentes de que falas.Por nada deste mundo deixaria a aldeia.
E quando vinha a Lisboa, três dias já eram demais.
MEG