segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

MULHERES DO CAIRO

Há meses, Joana Amaral Dias, provavelmente para fazer “prova de vida” política, avançou com uma proposta no sentido de serem criados espaços separados nos transportes públicos. Querer resolver problemas erguendo muros nunca foi grande ideia. E nunca solucionou coisa alguma. Isso fez-me recordar dois episódios ocorridos no Cairo, há pouco mais de uma década.

Juntem-se dois portugueses distraídos algures no norte de África e a coisa pode não correr bem... Foi na primavera de 2007. Olhámos (Cláudio Torres e eu) o combóio que acabava de parar na estação de Mar Girgis. Tinhamos ir ver a igreja ortodoxa. Já não recordo porquê, mas creio que pelos vestígios arqueológicos conservados algures num dos anexos. Parêntesis para referir que o metro do Cairo era (imagino que assim se mantenha) imaculadamente limpo, barato e pontual. Os turistas não o usavam muito e não sabiam o que perdiam. Fim de parêntesis. As portas do metro abriram-se e fomos diretinhos a uma delas. Os funcionários no cais esbracejavam vigorosamente. Rimos, fizémos adeus e entrámos. As portas fecharam-se e houve uma agitação de trajes negros. Sussuros, exclamações, vultos que se afastam. Tinhamos entrado numa carruagem só para mulheres, todos envergando o “niqab”. Há, no metro do Cairo, carruagens mistas e outras só para senhoras. O Cláudio verbalizou o óbvio "oh pá, merda, já demos barraca". Tinhamos mesmo. Fez-se uma larga clareira à nossa volta. Saímos na estação seguinte. Não fomos detidos nem assediados.

Pensava eu que as surpresas ficariam por ali. Não ficaram. Dias depois, entrei numa loja no souk de Khan el-Khalili. De novo com Cláudio Torres e com Anne-Marie Lapillonne, uma amiga marselhesa que trabalhava na EDISUD, uma editora infelizmente já desaparecida. Só havia senhoras na loja. Na casa dos 45/50 anos. Tinham ar de proprietárias do sítio, porte distinto, muito morenas e muito bonitas. Todas me faziam lembrar a lendária Hind Rostom, a Marilyn Monroe dos países árabes. Uma Marilyn um pouco mais anafada, ao gosto local. E ao meu. Sou presa fácil nas lojas. Acabei comprando bijuteria exótica, muito bonita, na minha opinião, mas de sucesso discutível. Ao contrário do que sucedera no metro as senhoras (juraria eram cristãs coptas…) não só não se deixaram impressionar com a presença masculina na loja, como exigiram, para enorme gáudio da Anne-Marie, que fizesse uma fotografia com elas. Tenho essa recordação lá em casa, eu muito enfiado no meio das exuberantes e belas cairotas.

No comércio não há barreiras nem sítios exclusivos. Não pode haver. Mas num país pode haver vários países. Nem sempre coincidentes, muitas vezes contraditórios (em Damasco, a “lingerie” era vendida à porta da mesquita principal...). É o caso do Egito, onde o choque de culturas se exacerbou. Em todo o caso, é legítimo que se pergunte: sem estas contradições e sem estas ilógicas, teria a cultura mediterrânica a vivacidade, o vigor e o colorido que tem? Permito-me duvidar.

Hind Rostom, a Marilyn Monroe do mundo árabe

Crónica publicada hoje, em "A Planície"

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